A notícia da
incorporação, ontem, dia 18.12, de cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB,
REDE, PCdoB) à frente, já anteriormente formada pelo chamado “Centro
Democrático” (DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, PV), que o Presidente da Câmara
dos Deputados, Rodrigo Maia, articula para disputar sua sucessão, marca uma
aliança política de grande significado. Independente dessa aliança levar ou não
a uma candidatura única, importa que se torna bem mais robusto um movimento de
amplas dimensões pela independência daquela casa legislativa e de reação à
tentativa do Poder Executivo de instrumentalizar o seu comando. Nesse momento o
deputado Artur Lira, candidato apoiado pelo Planalto, passa, em tese, à
condição de candidato minoritário, se somados como seus adversários os
deputados integrantes das bancadas daqueles onze partidos.
Vários tópicos
entram em pauta para se analisar as implicações desse fato político. Dentre
eles é possível citar o grau de correspondência efetiva que haverá entre as
decisões das direções partidárias e o comportamento das bancadas, as
repercussões, nas bancadas dos partidos do bloco “centro democrático”, especialmente
o PSL e o DEM, dessa aliança com a esquerda, PT incluído e a nova relação que
se poderá estabelecer entre as eleições na Câmara e no Senado, por vezes vistas
como partes de uma “operação casada”.
Cedo para compreender tudo isso. Mais produtivo analisar o contexto mais
geral dos processos sucessórios nas duas casas do Congresso, ao qual o fato de
ontem se incorpora. Parto da premissa de
que o referido processo teve sua dinâmica afetada pelo timing de uma decisão
judicial provocada por adversários do movimento unitário que se robustece na
Câmara.
Judicialização como
refração de um processo político
Como sabido e já bastante comentado, as urnas de 2020 trouxeram más notícias aos bolsonarismo e ao lavajatismo, os grandes vencedores de 2018. É menos evidente, devendo ser salientado, que essas duas faces da direita negativa não metabolizaram a nova disposição do eleitorado, que valorizou a eficácia da política na gestão de municípios e deu sinal verde a políticas de frente democrática de um centro moderado. Poucos dias após a apuração dos votos, juntaram-se para tentar armar a mão do STF contra esse impulso agregador. Tiverem êxito, ainda que por apertada maioria. O tribunal interceptou o processo político que se esboçava nas duas casas do Congresso para a renovação de suas mesas diretoras. Processo que mal começara a entrar em sua fase mais importante, a fixação de candidaturas expressivas de um realinhamento de forças no Legislativo, que só poderia mesmo avançar a partir do resultado eleitoral, como se requer numa democracia.
É bom lembrar que o
STF foi formalmente provocado à judicialização preventiva do processo pelo PTB,
partido da base governista, que assim fez o primeiro movimento de revide ao
veredicto das urnas. Na sequência, uma bem articulada ameaça de “cancelamento”
via redes sociais recorreu a palavras chave do dicionário político das eleições
de 2016 e 2018 para emparedar o tribunal. Embora usando outro palavreado, não
foi diferente a posição da mídia tradicional. Armou-se o raciocínio de que o
STF prevaricaria se permitisse a continuidade do jogo político no Legislativo.
Conforme esse raciocínio, “os políticos”, fatalmente, rasgariam a Constituição.
Logo, caberia ao tribunal antecipar-se, mesmo na ausência de fato concreto,
para pôr ordem na “bagunça”. Preconceito
antipolítico travestido de prevenção, pois, se é verdade que havia sinais de
que um ator importante, o presidente do Senado, movia-se em direção a uma
transgressão, sinais opostos partiam de articulações do Presidente da Câmara.
E, para além disso, o processo envolvia um conjunto de partidos e lideranças
que, por dever de oficio e instinto de sobrevivência política, tenderiam a ser
afetados pelo espirito das urnas. Tinha horizonte, ao menos na Câmara, a
articulação de uma ampla candidatura comprometida a conservar a independência
da Casa frente ao Executivo e o padrão de decisões colegiadas que ali se
verificaram nos últimos anos. E se, no
caso no Senado, seu presidente passasse da intenção ao gesto para viabilizar
sua reeleição, com aparente cobertura de um plano B do Governo aí, sim, o STF
seria chamado a se pronunciar perante um fato concreto.
Para não raciocinar
sobre hipóteses, o STF poderia ter simplesmente desconhecido a ADIN do
PTB. Aliás, se não fosse o preconceito
que ali também há contra a lógica do Parlamento, essa poderia ter sido a
posição preliminar do presidente do tribunal. Feito relator, o ministro Gilmar
Mendes também poderia, como Pilatos, ter ido nessa direção. Não o fez, mas
também não foi na linha da interferência no jogo político. Ao contrário,
apontou que era assunto do Legislativo, o que lhe rendeu críticas. Se houvesse
lavado as mãos seria criticado do mesmo modo, por não ter interferido a tempo
para impedir a "bandalheira".
Por outro lado, o fechamento prévio da porta à estratégia de Rodrigo
Maia (que acabou ocorrendo, contra o voto de Gilmar) pode ter aberto a porta da
Câmara dos Deputados a Bolsonaro. O tamanho desse perigo só sabia quem tinha
informação sobre a correlação de forças real. Deve ter sido o caso de Mendes,
dotando seu voto de razões próprias de um cálculo político. Um pecado? Quem
disso escapa, na posição em que ele está? Gilmar foi minimalista e propôs
deixar à liderança do outro Poder a decisão sobre os custos políticos
comparativos da derrota de um candidato de continuidade que não fosse o próprio
Maia e os das implicações de marcar um gol em impedimento. Gol que no fim das
contas não valeria, já que habemus STF. Logo, o voto minimalista foi
condicional e não rasgou a Carta. Na contra mão de um senso comum que acha
realista prejulgar políticos, penso que faria mais bem à saúde das instituições
brasileiras se a maioria do STF tivesse seguido o voto de Gilmar Mendes e dado
a Rodrigo Maia o benefício da dúvida, mantendo a condicional.
Por que não o fez?
Difícil aceitar a hipótese de que tenha sido por razões doutrinárias. Como
observou um aluno perspicaz, é curioso que a letra da Carta tenha sido
defendida pelos partidários do “direito criativo” e o “jeitinho”, proposto
pelos garantistas. Do paradoxo só
escapou o ministro Marco Aurélio. Afora ele, parece que gregos e troianos
votaram com a lógica da política. O voto de Gilmar tem afinidades eletivas com
a política dos políticos. Já a posição da maioria expressa quanto o impacto da
ética faxineira da Lava Jato ainda afeta a conduta de parte da cúpula do
Judiciário. Alguém me dirá que depois da desmoralização de Moro, essa hipótese
é enxergar vida no velhinho que morreu ontem.
Sergio Moro e sua
turma entraram em decomposição. O lavajatismo, penso que não. É força latente,
atuante na subjetividade de larga faixa da sociedade, mesmo que momentaneamente
esteja na penumbra, pela prioridade objetiva da pandemia sobre a corrupção.
Vejo-o como um sentimento público em busca de novo intérprete após o fracasso
político de Moro. João Dória é um óbvio candidato a esse legado, daí sua
dificuldade e sua indisponibilidade para interagir com tudo que cheire a
esquerda. Mas Bolsonaro não renunciará ao mesmo legado, daí a guerra sem quartel
entre ambos. Bolsonaro, ou a política palaciana, já trabalha para reconectar o
legado lavajatista ao seu eclético repertório eleitoral, usando o aparato da
segurança pública, sua influência em áreas do MP e as brechas que vai abrindo
no Judiciário, prisma sob o qual se deve analisar, a meu ver, a coalizão de
veto que aconteceu no STF no julgamento da ADIN do PTB.
Efeitos
politicamente regressivos da judicialização
Salta aos olhos que
uma frente ampla contra a bolsonarização da Câmara até a npte de ontem ainda
não pudera passar de palavra a ato. O jogo político exige harmonização de
discursos e de interesses complexos. É preciso gerenciar compromissos
político-partidários, distribuir recursos e espaços políticos entre os aliados,
no Congresso e fora dele e sintonizar as alianças nesse episódio particular com
as que têm 2022 no horizonte e com as ainda mais gerais e permanentes, que
importam na defesa das instituições. O encurtamento do prazo para fazer tudo
isso teve graves implicações. Admito não ter tido, prospectivamente, no momento
em que o STF julgava, a clareza que penso ter disso hoje, após o leite
derramado. O candidato fisiológico
passou a operar na Câmara com desembaraço bem maior. E mesmo que não seja bem
sucedido, que perca a eleição ou mesmo desista dela, a solução alternativa vencedora
deverá estar mais distante de ter um perfil político contraposto ao dele.
Bolsonaro pode não ganhar a Câmara do jeito que quer, nem controlar o
Senado. Mas tampouco será fácil isolá-lo,
a não ser que ele deseje.
Por outro lado, foi
um teste e tanto para a possibilidade de uma frente política futura que tenha
no DEM um eixo de articulação. As tensões no partido acentuaram-se na razão
direta da redução do espaço de manobra de Rodrigo Maia. A costura nos
bastidores do nome da ministra Teresa Cristina para a cadeira que hoje ele
ocupa é um recado claro de que o partido já age para enquadrar o seu personagem
até aqui mais destacado. E não é realista esperar que partidos aliados ajudem a
dissipar essas tensões. O MDB enxerga a possibilidade de retomar o controle do
Congresso. Tucanos, sempre no limiar do discurso hegemônico, têm essa tendência
reforçada pelo comando de João Dória. Quanto à esquerda, notou-se, após o julgamento
do STF, movimentos erráticos que vão desde alimentar candidatura própria a
negociar no varejo turvo de Artur Lira. O gesto político de ontem sinaliza a
reversão do segundo tipo de movimento, mas a ideia de candidatura de esquerda à
presidência da Câmara não se afastou da boca da presidente nacional do PT.
Existe a
possibilidade do passo agregador dessa sexta-feira reverter um perigo que se
insinuava no centro político da Câmara dos Deputados e em suas conexões à
esquerda, aquele pathos centrífugo que acometeu, a partir de 2017, a coalizão
que sustentara o impeachment de Dilma Rousseff e levara Michel Temer à
Presidência. A centrifugação da amplíssima articulação do presidente começou
quando Rodrigo Janot produziu um artefato midiático com o caso Joesley Batista.
A centrifugação do arco de Rodrigo Maia tornou-se possível desde que o STF,
também diante de um artefato de apelo midiático, aceitou fazer da sucessão das
mesas do Congresso um parto prematuro.
Tirado de tempo, Maia tentou a autoconvocação do Congresso, que suspenderia o recesso parlamentar para não deixar o governo agir solto no breu das tocas. A PEC emergencial não foi pauta capaz de fazer os partidos de centro se moverem e fez a esquerda roer a corda com receio das reformas. Pela enésima vez não confiou no caminho da negociação política, preferindo a comodidade do status quo. O relator governista da PEC não apresentou, é claro, seu relatório e assim sepultou a ideia da convocação extraordinária, cuja serventia iria além da PEC e se estenderia a dois problemas cruciais para o País, no momento, para cuja solução se requer unidade e moderação, logo, vigilância do Congresso. Além das sucessões no próprio Congresso, o da vacinação, interesse público número um, de que tratarei na próxima semana pois não se pode tratá-lo a não ser como foco central.
Com tempo ruim todo
mundo também dá bom dia
Em meio a tantos
percalços e com o Congresso fechado em janeiro, o campo estará, em tese, livre
para o governo operar nas sombras e tentar impor seus candidatos. Mas quem der
como certo que o Parlamento foi neutralizado e que aceitará ser humilhado pela
leviandade contumaz do Presidente da República pode ter surpresas. Situação oposta ficou patente, também nessa
sexta-feira, 18, na tribuna da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa
reagiu de modo contundente a uma acusação de Bolsonaro ao Legislativo,
qualificando-a de mentirosa e tendo sua narrativa dos fatos, pela qual
restabeleceu a verdade, confirmada pelo próprio líder do governo. Fora do
plenário, no manifesto que anunciou a ampliação do “Centro Democrático” lê-se
que “Os radicalismos se retroalimentam e são fundamentais para explicar a nossa
união. Enquanto alguns buscam corroer nossas instituições, nós aqui lutamos
para valorizá-las”.
Esses sinais de
contraponto à ingerência espúria de outro Poder nas decisões do Legislativo
animam, mas não devem iludir quanto a dificuldades de um processo em que a
assimetria de recursos de cooptação e de chantagem joga contra a autonomia da
instituição e cujo desfecho se dará numa votação secreta. Mas um discurso
político forte pela independência da Câmara tem apelo pragmático também.
Deputados e senadores, de um modo geral, têm noção do poder de barganha que
perdem se elegerem presidentes que se dobrem a um Executivo comandado por um
candidato a ditador. Tendem a preferir alguém com moderação no trato com o
governo, mas firmeza na defesa do Poder e que cumpra acordos internos. Esse foi
o roteiro de construção da liderança de Rodrigo Maia.
Nomes assim não
podem ser encontrados se o roteiro para tratar desse problema for o confronto
personalizado com Bolsonaro. A
resiliência de sua popularidade seduz os mais pragmáticos, porém, seu efeito
mais corrosivo é irritar os adversários impacientes, fomentando a dispersão e
jogadas para a plateia. Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de
maldade que o presidente encarna. Provam-no os sucessivos momentos em que foi
desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos.
Foi assim no segundo turno de 2018, com o “elle Não!” puxado por um
lulo-petismo ferido; foi assim em maio desse ano, quando o mito começou a
ressurgir, ainda antes do auxilio emergencial, logo após Sergio Moro supor que
o foguetório de artificio de seu rompimento seria um tiro de misericórdia sobre
um presidente até então isolado por se opor à política pública do moderado
ministro Mandetta; está sendo assim agora quando, uma semana depois de fortes
embates com o governador de São Paulo em torno da vacina, pesquisa Datafolha
informa que Bolsonaro é bem avaliado por 37% dos entrevistados e que para 52%
ele não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pela covid no Brasil.
Na esteira dessas
lições o discurso político firme e unitário precisará, nesses pouco mais de
trinta dias, ser combinado com a abertura de novas frentes de entendimento com
áreas próximas à candidatura de Lira na Câmara e com a bancada governista no
Senado. Preparar-se para vencer um embate em condições adversas é um
empreendimento em que, afinal, um acordo pode também se tornar razoável. E ele
também é possível, se o adversário tiver igualmente juízo atento ao preço pago
por Dilma Rousseff por imaginar que poderia politizar plebiscitariamente uma
eleição no interior do Legislativo.
Num cenário como
esse, estará em posição privilegiada quem, a essa altura, ainda puder
intermediar, com êxito, uma negociação do centro democrático do Congresso com
as bases parlamentares governistas nas duas casas, em torno de possíveis nomes
de consenso. A posição discreta que o ex-presidente Temer ocupa na geografia
política do país faz dele alguém que poderia obter um “nada a opor” do governo
a tal entendimento sem, necessariamente, precisar de um “tá ok” de Bolsonaro.
Até porque não se pode escrever o que o ex-capitão diz. As chances de êxito
dessa interlocução provem dela poder se dar, simultaneamente, com o centro e o
centrão e favorecer um entendimento autônomo, no Legislativo, para manter teso,
numa conjuntura social e sanitária crítica, o arco da promessa de
governabilidade com preservação da democracia que exerceu em 2019-2020.
Na falta de um
horizonte límpido, a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro
traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes
políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento
articulado da pandemia no Brasil; de cooperações entre governos estaduais e
municipais adversários; do auxílio emergencial, do auxílio aos Estados, da
votação do Fundeb. Nesses momentos Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao
inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental.
Sei que o que estou dizendo não responde a certas urgências e convicções, mas o
que responde?
Peço, a quem o
desfecho dessa coluna decepcionar, que me conceda o benefício de esperar a da próxima
semana. Talvez tratando de outro tema crucial, eu possa argumentar melhor pelo
bem público que faria um grande acordo político que evitasse a disputa
dilacerante que se anuncia pelo controle das mesas diretoras do Congresso.
Daqui a 30 dias o país agradeceria se sobre ambas reinasse, soberano, em vez da
sucessão, o tema da vacinação. Sem prejuízo de que a frente democrática que se
desenhou hoje na Câmara tenha longa vida e ganhe muita força no parlamento e na
sociedade. Aliás, um acordo nacional para vencer a crise com aval do
Legislativo é uma promessa que depende da solidez do arco.
* Cientista político e professor da UFBa.
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