quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Especialistas veem falsidades novas e antigas no discurso

Para especialistas, fala de Bolsonaro só mirou público interno

Por Daniela Chiaretti | Valor Econômico

SÃO PAULO - O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas foi “um inventário de fake news requentadas e de falsidades novas”. A frase do ex-ministro do Meio Ambiente Rubens Ricupero sintetiza o sentimento de ambientalistas, ex-ministros e pesquisadores.

“Não há uma palavra que corresponda à realidade, um pingo de honestidade. Se imaginaria que ele poderia, 12 meses depois do agravamento de problemas, reconhecer a realidade e dizer o que o governo fez. Mas, não”, segue o embaixador. “Repete todos os chavões do negacionismo sobre Amazônia e Pantanal. Atribui a conspirações, a campanhas internacionais, a interesses escusos a cobiça pela Amazônia.”

 “E ainda tem o desplante de botar a culpa nos mais vulneráveis, os índios e os caboclos”, diz. “O discurso nunca foi concebido para a Assembleia Geral da ONU. É para o público doméstico.”

A ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira aponta “o tom errado” do discurso. “A fala sugere ruptura ou muita desconfiança de uma sociedade multicultural e diversificada como a brasileira”, diz Izabella, reagindo aos ataques de Bolsonaro às ONGs. “Não se pode escolher interlocutores em um regime democrático. Tem que se falar com todos.”

“Ele faz um discurso que lista os interesses do mundo contra o Brasil. Somente os interesses do Brasil são legítimos?”, questiona.

Para João Paulo Capobianco, vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), o discurso de Bolsonaro “é meio fanfarrão”. Ele explica: “Aparentemente ele luta contra os fatos e não apresenta proposta nenhuma.”

Capobianco era secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente durante a gestão de Marina Silva, quando se aplicou um rigoroso plano de combate ao desmatamento, que caiu de forma consistente, ano a ano.

Em relação à fala do fogo causado por índios e caboclos, Capobianco contesta. “Isso não é verdade. A maior parte das queimadas ocorre em áreas que eram florestas e foram derrubadas.”


Para Ana Toni, diretora-executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS), o discurso de Bolsonaro “foi mais uma peça da campanha de comunicação de desinformação e disputa de narrativa do governo sobre o que está acontecendo na Amazônia, no Pantanal e no nosso meio ambiente”.

Segundo ela, o governo já “deveria ter percebido que a comunidade internacional já está vacinada contra o vírus da desinformação. Querem dados e resultados.”

“A menção aos indígenas tem que ser vista como um ataque coordenado do governo”, diz Carlos Rittl, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados em Sustentabilidade de Potsdam, na Alemanha. “É um discurso que visa a reeleição e manter sua turba de WhatsApp.”

Na visão do deputado constituinte Fabio Feldmann, Bolsonaro “repetiu o que vem dizendo, mantendo o Brasil afastado de qualquer possibilidade de ser respeitado e manter um mínimo de credibilidade”.

Maurício Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil, lamentou o discurso. “Infelizmente foi conforme o previsto. Marcado pelo negacionismo e por acusações infundadas, [Bolsonaro] tentou mostrar ao mundo um Brasil que não condiz com a realidade que vivemos e observamos todos os dias”.

Segundo ele, a “fala diversionista reduz ainda mais a credibilidade do Brasil nos esforços globais por mais cooperação e multilateralismo para o bem de todos”.

Para Roberto Waack, especialista em governança, Bolsonaro falou na ONU para o seu público, mas não convenceu ninguém no cenário internacional. “Ele é um pária exótico. O Brasil não é o governo Bolsonaro. Creio que o mundo sabe disso, mas precisa ficar ainda mais claro”, defende.

Para André Siqueira, presidente da Ecoa, a fala de Bolsonaro foi previsível. “Foi uma conversa para os seus cabos eleitorais cegos que o seguem até o fundo do poço”, afirma ele, à frente de uma ONG fundada em 1989 e baseada em Campo Grande.

Em nota à imprensa, Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, rede formada em 2002 composta por 50 organizações não governamentais e movimentos sociais, diz que, “ao arrasar a imagem internacional do Brasil como está arrasando nossos biomas, Bolsonaro prova que seu patriotismo sempre foi de fachada”.

Astrini reagiu às acusações do presidente às ONGs. “Acusou um conluio inexistente entre ONGs e potências estrangeiras contra o país, mas, ao negar a realidade e não apresentar nenhum plano para os problemas que enfrentamos, é Bolsonaro quem ameaça nossa economia. O Brasil pagará durante muito tempo a conta dessa irresponsabilidade.”

A Oxfam, por sua vez, em nota, diz que “é lamentável ver o presidente fazer o discurso de abertura da assembleia da ONU descrevendo um país imaginário”.

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