- O Estado de S.Paulo
As décadas
passam e os hábitos podem até permanecer os mesmos. Mas, as crises mudam
O título desse artigo parafraseia famoso artigo de um dos economistas latino-americanos mais brilhantes de sua geração, Carlos Díaz-Alejandro. Em 1984, Díaz-Alejandro publicou paper para o Brookings Papers on Economic Activity (BPEA) intitulado “Latin American Debt: I don’t think we are in Kansas anymore”. O artigo tratava da crise da dívida latino-americana dos anos 80, porque sua manifestação fora tão severa, com olhar reflexivo e em desalinho com o senso comum. Em essência, Díaz-Alejandro argumentava que a visão consensual de que a severidade da crise resultara dos erros de política econômica dos diversos países da região não fornecia um quadro suficientemente abrangente para entender a complexidade dos problemas enfrentados. Portanto, no lugar da versão em preto e branco – o Kansas no filme O Mágico de Oz que o autor referenciava – havíamos entrado em mundo technicolor, onde uma explicação tão somente de “senso comum” não mais dava conta do recado.
Teria grande curiosidade
em ouvir o que diria Díaz-Alejandro sobre o momento atual da América Latina. Mais curiosidade ainda teria em
escutar Dionisio Dias Carneiro, que hoje completaria 75 anos. Coube às
coincidências fortuitas dessa vida que eu escrevesse nesse espaço tanto no
aniversário de dez anos do seu falecimento, quanto no próprio dia de seu
aniversário. Dionisio era o ocupante original dessa coluna – foi com grande
honra que passei a escrever em seu lugar há quase exatos 10 anos. Mas,
divago.
Vejo com estranheza
argumentos que remontam à década de 80 para explicar os perigos que corre
o Brasil.
Não que o Brasil não corra perigos. A epidemia descontrolada, as mortes
crescentes, a tragédia das vidas, a falta de rumo de um governo que acaba de
nos proporcionar mais um vexame na abertura da Assembleia Geral da ONU.
Na economia, o Brasil corre grandes perigos. Contudo, entre eles não consta o
risco de que o País não possa mais pagar o que deve como aconteceu no início
dos anos 80. Muita gente pergunta, quando ouve a menção feita por alguns
economistas, o que significa um país “quebrar”. O uso dessa palavra para se
referir a uma nação de fato confunde. Mas, um país “quebra” – ainda que o termo
seja bastante impreciso – quando já não tem mais condições de honrar suas
dívidas.
A dívida brasileira está
muito alta e subirá mais, ante a queda do PIB e
as necessidades impostas pela pandemia. O déficit público também caminha para
patamares historicamente elevados. Se fôssemos capazes de pôr o País em uma
máquina do tempo rumo a 1982, já estaríamos “quebrados”, mesmo feitas todas as
ressalvas de Díaz-Alejandro. Mas, não estamos nos anos 80. Naquela época, os
juros norte-americanos alcançaram dois dígitos em razão da inflação que afligia
o centro da economia mundial. Permaneceram elevados por muitos anos, em parte
prejudicando as negociações para reestruturar as dívidas dos países da América Latina junto aos bancos estrangeiros. O
ambiente externo marcadamente hostil, além da má gestão macroeconômica, foram
responsáveis por uma década perdida de crescimento e por um processo
hiperinflacionário que entrou para a história como dos mais longevos.
O quadro que enfrentamos
hoje é outro. Hoje, o presidente do Fed, Jerome Powell, pede socorro ao Tesouro para ajudá-lo
na tarefa de recuperar a economia americana da tragédia pandêmica. Hoje, os
principais bancos centrais do mundo – especialmente o dos EUA – já sinalizaram
que os juros excepcionalmente baixos vieram para ficar. Não há horizonte de
altas de juros globais, como não há horizonte de pressões inflacionárias mundo
afora. O mundo pandêmico e pós-pandêmico é ambiente de lenta convalescença,
quiçá com sequelas. Sequelas como dívidas e déficits elevados por um longo
período. Nesse contexto, o Brasil, hoje com sua dívida majoritariamente
denominada em sua própria moeda – outra importante distinção em relação aos
anos 80 – não corre qualquer risco de “quebra” iminente. Ao contrário, o País
tem um bom período pela frente para tratar do que necessita a economia e para
ajustar a dívida de modo gradual.
É claro que o risco – e o
grande perigo – é que o Brasil não faça nada disso. O grande risco é que
desperdicemos esse tempo valioso gastando com o que não devíamos e deixando de
gastar com o que temos a obrigação de gastar: gastar para garantir a vida e a
sobrevivência das pessoas. Caso falhemos, no olho da tormenta que se abate
sobre nós, não sobre Kansas, estará a perene armadilha do crescimento baixo com
todas as suas consequências. As décadas passam e os hábitos podem até
permanecer os mesmos. Mas, as crises mudam.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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