- O Estado de S.Paulo
Desde
1947 cabe ao Brasil abrir a Assembleia-Geral das Nações Unidas, na sede
da ONU, em Nova York. O primeiro a fazer uso da prerrogativa
foi Oswaldo Aranha. De lá para cá, nossa representação só
deteriora. Com Jair Bolsonaro já são dois anos de negacionismo,
mentiras e blablablá ideológico. Em 2019, presencial; ontem, em vídeo. Não importa, a vergonha é a mesma.
Infrutífero comparar as falas de Bolsonaro com outras igualmente infelizes de presidentes que o antecederam. De jaquetão e bigode engomado, José Sarney exibiu um inglês macarrônico. Mas não mentiu nem criou fantasias persecutórias aos olhos do mundo, nem tampouco exibiu desconexão completa da realidade.
Dilma Rousseff discursou várias vezes e sua fala recebeu merecidas críticas, por edulcorar os escândalos de corrupção que ajudaram a pavimentar seu impeachment, logo depois, por tergiversar com ataques à democracia em países de esquerda. Mas ela se conteve, por exemplo, e não falou em golpe ao discursar em abril, já às vésperas de ser afastada, para não levar assuntos domésticos e, mais, uma interpretação dos fatos, a um palco internacional.
Com Bolsonaro não há paralelo possível. Quando se pensava que nada poderia superar a fala do ano passado, na deste ano o presidente brasileiro disse cinicamente que o Brasil tem um dos melhores resultados no enfrentamento da covid-19, isso com mais de 137 mil mortos nas costas, enalteceu nossa política ambiental mesmo com a Amazônia e o Pantanal queimando aos olhos do mundo, converteu o auxílio emergencial em dólar e somou todas as parcelas para vender uma bonança dos mais pobres que é falsa e ainda inventou um conceito, a “cristofobia”, que, se bem explorado pelos seus ideólogos reacionários, pode fornecer mais empulhação para as eleições de 2022.
Diante de tal acervo de sandices, os paralelos possíveis com Bolsonaro na ONU se situam na ficção e no baixo clero, de onde o nosso presidente veio e de onde nunca teria saído em condições políticas normais.
A primeira referência é a antológica passagem de Odorico Paraguaçu, personagem do genial Dias Gomes, pelas Nações Unidas. Cercado de um séquito que incluía beatas fervorosas (também há as Cajazeiras do bolsonarismo), um puxa-saco caricato (candidatos a Dirceu Borboleta não faltam no Ministério) e o “capitão” Zeca Diabo (versão anos 80 de miliciano), o prefeito de Sucupira queria oferecer um terreno na cidade para que fosse construída a nova sede da ONU. Megalomania, ridículo e nacional-populismo na veia. Em 1983, pelo menos, era dramaturgia.
Outra passagem que lembra nos contornos patéticos as participações de Bolsonaro no fórum global foi a de Severino Cavalcanti em 2005, como presidente da Câmara, que cobri in loco. Então alvo do escândalo do “mensalinho”, em que era acusado de recolher propina de permissionários da Casa, o deputado pernambucano viajou com direito a séquito e limusine a Nova York e foi alvo de sistemática cobertura de imprensa.
O cerco a Severino, que se escondeu até no banheiro da ONU para fugir da imprensa, levou jornalistas de outros países a nos perguntarem quem era aquele homem para receber tanta atenção. Nos questionavam se ele estava envolvido no escândalo “Petróleo por Comida”. Mal sabiam que era comida por mensalinho mesmo, algo bem mais rastaquera.
Bolsonaro, com suas mentiras cínicas e deliberadas no momento mais grave da vida nacional neste século, rebaixa a Presidência a uma versão digital da Sucupira de Odorico.
As agências de checagem já trataram de desmontar o discurso fake que ele fez. A mim restaram essas reminiscências envergonhadas. Levaremos anos para suplantar esse momento de rebaixamento do Brasil.
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