É
uma concepção de extrema direita, que não se confunde com direita conservadora
e liberal
A
ideologia bolsonarista configura um caso de concepção de extrema direita, que
não se deixa confundir com posições de direita conservadora e liberal. Ela se
constitui enquanto conjunto de ideias que estrutura a sua ação, visando à
instituição de sua própria forma de poder. Criticá-la por “insensata”,
“maluca”, “macabra” ou “contraditória” realça isoladamente determinados
aspectos seus sem, no entanto, abarcar a sua totalidade. São posições que, por
assim dizer, se situam em outra perspectiva, a de uma normalidade que é posta
em questão. Vejamos alguns de seus eixos estruturantes.
A figura do líder – Bolsonaro se produz como um líder de massas, que com elas procura estabelecer uma interação direta, sem o uso de mediações, como a Câmara dos Deputados e o Senado. Ou seja, a representação política é objeto de escárnio, salvo nos casos em que se torna necessária, como hoje ocorre com o restabelecimento das relações com alguns partidos políticos, por temor de impeachment ou de perda de poder. Seu objetivo consiste em colocar-se acima das instituições e da sociedade, como se só ele soubesse o que é melhor para elas. Não hesita em se colocar como grande médico e cientista, prescrevendo medicamentos ineficazes, como a cloroquina. Sozinho sabe o que é melhor para a saúde dos brasileiros, menosprezando a ciência por princípio. Em outra versão, é o “super-homem” contra os “maricas”. Eis por que é tratado por mito, por maior que seja a bobagem que diga. O mito é o lugar do seu saber.
O medo – Insufla ele
o medo da pandemia e do desemprego, ao mesmo tempo que se apresenta como a
solução da pandemia e do desemprego. Não é ele responsável por nada, tudo
atribui aos outros como causadores desta situação, sejam os chineses, os
comunistas ou os políticos a ele não alinhados. Ele precisa do medo para
governar e se põe na posição de “salvador”. Isso pode soar paradoxal, porém só
o é na perspectiva da política clássica, e não da de extrema direita, que
expressa a sua concepção. Mais especificamente, o seu modo de tratamento da
pandemia corresponde a essa orientação, jogando com o medo da doença e da
morte, declarando procurar minimizá-las. O Brasil chega às 210 mil mortes, no
entanto, é como se fosse “da vida” a morte causada por descaso, incúria e, em
certo sentido, intencionalmente, visto que vem a fazer parte desse jogo macabro
da política.
Ausência
do princípio da não contradição – O princípio da não contradição,
formulado por Aristóteles, que veio a fazer parte do exercício da razão e da
política, não opera numa concepção de extrema direita. O líder diz uma coisa
num dia e o seu contraditório no dia seguinte, e assim indefinidamente. Seu
traço característico é que sempre tem razão, por mais irracional que seja a sua
posição. Um dia declara o presidente que jamais comprará uma vacina chinesa, em
outro a compra; um dia a covid-19 é uma mera “gripezinha”, em outro, uma doença
mortal; um dia, ao arrepio de qualquer verdade, considera que apenas seus
medicamentos mágicos são eficazes e em outro, que o Brasil é o país que tem o
melhor desempenho mundial no combate a essa pandemia. Um dia é contra a
corrupção na política, em outro protege os seus que estão nela envolvidos.
Distinção
amigo e inimigo – A política de extrema direita está baseada na
distinção amigo/inimigo, formulada pelo teórico nazista Carl Schmitt. Todo
aquele que não se alinha ao líder em suas mutáveis posições, uma vez que ele
detém a razão e a verdade, é tido por inimigo. Não há possibilidade de diálogo
e conciliação, salvo sob a forma enganosa produzida por alguma oportunidade do
momento. Ela está centrada na destruição do outro, na não aceitação da crítica
e na tentativa de impor diretamente uma relação hierárquica de comando: sou
“eu” quem manda! Quem não estiver comigo deve ser abatido, o que vale para
“amigos” que, por discordância, deixaram de sê-lo. Veja-se o caso de agora
“ex-amigos” do presidente que ousaram discordar de suas opiniões. Observe-se
que tal tipo de política cria a desordem institucional, sanitária, econômica e
social, embora a sua justificativa seja a de que o “salvador” é o fiador da
ordem.
Milícias digitais – As milícias do líder apresentam-se sob a forma contemporânea de milícias digitais. De um lado, não há nada de novo, uma vez que tanto o nazismo quanto o fascismo fizeram uso intensivo dos meios de comunicação vigentes na época, muito particularmente do rádio; de outro lado, as novas redes digitais são muito mais abrangentes, alcançando diretamente as pessoas, prescindem dos meios de comunicação tradicionais e também dos seus meios de controle. Mentiras e o que se denomina fake news têm livre trânsito, como se um mundo paralelo por meio delas se criasse, pretendendo alguns ser o verdadeiro. Mais particularmente, os meios digitais, por seu modo de transmissão e mensagem, são particularmente adequados para a distinção amigo/inimigo, tratando o “discordante”, o “opositor”, com desprezo e escárnio, como inimigo a ser abatido.
*Professor de filosofia na UFGRS.
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