Anna Virginia Balloussier / Folha de S. Paulo
RIO
DE JANEIRO - Ao dar reiteradas amostras de que "tem o pé atrás" com
a Carta Magna
de 1988, o presidente Jair Bolsonaro se credenciou para o impeachment,
uma sanção tão severa que "somente se aplica àquele presidente que adota
como estilo um ódio governamental de ser, uma incompatibilidade com a
Constituição", diz Carlos Ayres Britto, 78, ex-ministro do STF.
"Respostas
[para a crise sanitária] como 'e daí?'
ou 'não sou
coveiro' não sinalizam um caminhar na contramão da
Constituição?"
Tudo
do ponto de vista jurídico, porque cabe ao Congresso decidir o destino do chefe
do Executivo, e é bom que seja assim, afirma.
Ministro
do Supremo Tribunal Federal de 2003 a 2012, nomeado por Lula no primeiro ano de
governo do petista, em 2016 ele
disse à Folha que impeachment não é golpe. Comentava,
então, a possibilidade de Dilma Rousseff ser destituída, o que acabou
acontecendo naquele ano.
"Ortodoxamente
quarentenado", saindo apenas uma vez por mês, "de carro e máscara, só
pra espairecer", Britto espera a vacina contra a Covid-19 chegar.
De casa, concede esta entrevista, em que sugere "menos incontinência
verbal e mais continência à Constituição" para o Brasil.
O
governante central é assim, tem o pé atrás com essa Constituição, consciente ou
inconscientemente. Quanto ao impeachment, essa mais severa sanção tem
explicação. Somente se aplica àquele presidente que adota como estilo um ódio
governamental de ser, uma incompatibilidade com a Constituição. É um mandato de
costas para a Constituição, se torna uma ameaça a ela. E aí o país se vê numa
encruzilhada. A nação diz, "olha, ou a Constituição ou o presidente".
E a opção só pode ser pela Constituição.
Então o sr. crê que a conduta de Bolsonaro na crise sanitária o credenciou ao impeachment?
Diria que o conjunto da obra sinaliza o cometimento de crime de
responsabilidade. Porém, o processo é de ordem parlamentar.
Do ponto de vista jurídico, quais seriam esses crimes de responsabilidade?
Pelo artigo 78, o presidente assume o compromisso de observar as leis, promover
o bem geral do povo brasileiro. Ou seja, não é representante dos que votaram
nele, dos ideólogos que pensam igual a ele. É de todo o povo. Menos
incontinência verbal e mais continência à Constituição.
A sociedade civil vai entendendo que regime democrático é para impedir que um governante subjetivamente autoritário possa emplacar um governo objetivamente autoritário. Se o presidente não adota políticas de promoção da saúde, segmentos expressivos da sociedade —a imprensa à frente— passam a adverti-lo de que saúde é direito constitucional. Prioridades na Constituição não estão sendo observadas: demarcação de terra indígena, meio ambiente.
E no contexto da pandemia?
O povo diz "saúde é o que interessa, o resto não tem pressa", a
Constituição, que saúde é dever do Estado e direito de todos. Salta aos olhos:
ele promove
aglomerações, não tem usado
máscara, não faz distanciamento social. Respostas
como "e daí?" ou "não sou coveiro" não
sinalizam um caminhar na contramão da Constituição?
A atuação da Anvisa é independente?
A agência deve dançar conforme a música da ciência, atuando sempre tecnicamente. Por isso e para isso é que ela foi criada por lei, sob a forma de autarquia. E autarquia é pessoa jurídica. Não órgão de uma outra pessoa jurídica —no caso, a União. Sua fidelidade não a esse ou aquele partido, essa ou aquela ideologia, esse ou aquele governo.
Acredita que haverá vontade política para remover Bolsonaro?
Esse tipo de análise é mais da ciência política.
Muita
gente diz que o impeachment é um trauma forte demais para um país, sobretudo no
meio de uma pandemia. Concorda?
Trata-se
de uma avaliação que incumbe às duas casas do Congresso. Pondero o seguinte: o
ideal, em qualquer democracia, é que todo presidente popularmente eleito inicie
e conclua o seu mandato. Foi eleito democraticamente para isso. Agora, à luz da
Constituição, há intercorrências que podem caracterizar crimes de responsabilidade
com suficiente gravidade para a decretação do impeachment.
Outra crítica comum: o Congresso pode sentar em cima do impeachment por razões pouco republicanas, como conchavos políticos, e que não é bom que só ele possa decidir se o presidente sai.
É uma opção constitucional. Muitas vezes você não tem a melhor saída, salvo
todas as outras. Como Winston Churchill dizia
sobre a democracia ser o pior regime, exceto todos os outros. Olha, entendo que
não há saída que supere em qualidade essa de entregar ao Congresso a avaliação
do crime de responsabilidade. Agora, os parlamentares vão responder pelos seus
votos eleitoralmente.
Bolsonaro mais de uma vez usou tom de ameaça contra o STF. A corte está a perigo ou as instituições estão funcionando?
Sim, elas estão. Já internalizamos a ideia fundamental de que a democracia não
é regime de força, mas tem que ser suficientemente forte para não se deixar
matar nunca. Por exemplo, já há compreensão de que as próprias Forças Armadas
estão regradas num título constitucional para defender as instituições
democráticas.
Descarta um novo 1964?
Internalizaram o sucesso civilizatório e não embarcarão em nenhuma canoa furada
do autoritarismo.
Não teria como fechar o Supremo com um cabo e um soldado, como disse Eduardo Bolsonaro?
Não prosperaria de jeito nenhum.
O líder do governo Bolsonaro [na Câmara, Ricardo Barros, do PP] advoga por um plebiscito para nova Constituinte.
Uma Assembleia Nacional Constituinte a gente sabe como começa, mas não como
termina. O pressuposto da convocação de uma é a falência múltipla da
Constituição em vigor, uma que já deu o que tinha que dar. Não é o caso do
Brasil, pois a nossa precisa é de tempo para dizer a que veio. E veio,
reconheçamos, como um projeto de vida nacional tão democrático quanto humanista
e civilizado.
Quando Bolsonaro diz que o STF o proibiu de "qualquer ação" contra a Covid, que pelo tribunal ele tinha que "estar na praia, tomando cerveja", ele mente. Atitudes assim exigem um enfrentamento aberto pelos ministros ou uma postura de contenção de danos, de não enervar mais uma relação já tensa entre Poderes?
É muito subjetivo e passa muito por quem estiver na presidência, que exerce uma
orientação institucional. Mas a autocontenção depende das circunstâncias. Há
momentos em que é preciso uma reação mais pronta, mais enérgica até, e há
momentos em que se faz uma avaliação de que não é motivo para uma interpelação.
E nesse caso?
Diria: por exemplo, quando o presidente reiteradamente coloca dúvida sobre a
precisa quantidade de votos que obteve na última eleição, e vai além para questionar a
eficácia da urna eletrônica, pode sim vir a ser interpelado pelo
Tribunal Superior Eleitoral. Porque esse tipo de afirmação coloca em xeque a
qualidade da Justiça Eleitoral e aturde o próprio eleitor soberano.
Como avalia a indicação de Kássio Nunes ao STF?
Não conheço mais de perto o ministro. Mas o que sei dele é de que,
tecnicamente, dá conta do recado.
Bolsonaro garantiu a pastores que sua segunda nomeação seria terrivelmente evangélica.
Tão difícil às vezes qualificar esses pronunciamentos do Bolsonaro. Requisito
de investidura do cargo não é a embocadura religiosa de ninguém. Até porque a
Constituição instituiu o Estado laico. Diz o artigo 19: é vedado ao
Estado "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes
relações de dependência ou aliança". Não sei por que essa referência à
qualidade evangélica de um dos futuros nomeados. É um indiferente jurídico a
formação religiosa da pessoa, mas dizer como se fosse condição de investidura é
estranhável.
O Supremo deve atuar em pautas de costumes que não prosperam no Legislativo?
A Constituição enuncia, didaticamente: as normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais têm aplicação imediata. Aí você diz, "mas se tais
direitos e garantias padecerem da falta de norma regulamentadora, não é preciso
esperar o Congresso editar essa lei"?
A
Constituição é um posto Ipiranga, dá resposta para tudo: "Conceder-se-á
mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável
o exercício dos direitos e liberdades constitucionais". Isso ao lado da
ação direta de inconstitucionalidade por omissão legislativa. Por isso que o
STF, diante da mora do Legislativo, fez incidir sobre os atos de
homotransfobia a lei criminalizadora do racismo.
O apreço da população pelo STF já foi mais alto. A rejeição é agravada com, por exemplo, o pedido de reserva de vacinas. A autocrítica da corte é válida?
Sempre válida. No caso da vacina, parece que houve mal entendido. O Supremo não
reivindicou, apenas se inscreveu por antecipação. Não é, segundo me pareceu,
reivindicar para si a primazia. Hoje nós temos essa universal circunstância da
internet. A Internet empoderou as pessoas. As redes sociais estão se tornando
antissociais. Então é isso, você trouxe à baila outra variável. Nós ainda vamos
ralar para administrar com sensatez as plataformas.
Nossa democracia corre perigo?
Toda democracia vive sob risco de morte, porque todas as que morreram foi de
“morte matada”, não de “morte morrida”. O que varia é o tamanho do risco. Dois
poderosos antídotos contra os democraticidas já existem no país: é que ninguém
pode impedir que a imprensa fale primeiro sobre as coisas, nem que o Judiciário
fale por último. Assim como já existe aquela parelha de antídotos que se lê no
pensamento de Thomas Jefferson, o segundo presidente dos EUA: “O preço da
liberdade é a eterna vigilância”; “a arte de governar consiste exclusivamente
na arte de ser honesto”.
E o caso Trump?
É que a democracia não está a salvo de acidentes eleitorais de percurso. Daí
que, ante extrema sectarizacão, surjam eleitos de extrema esquerda, ou de
extrema direita, e até mesmo os de extrema ignorância, no sentido negacionista
da própria ciência. É quando essa democracia mesma aciona mecanismos
aptos a fazer a ficha cair: a sociedade se apercebe de que não pode continuar a
pagar um mico civilizatório. E na primeira oportunidade eleitoral, o povo se
decide a apear tais governantes.
Fica a lição de que um povo que elege mal os seus governantes se torna tão vítima quanto cúmplice de sua própria desgraça.
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