Estamos
condenados a conviver com a covid e a escassez
A
aprovação da Anvisa para o uso emergencial das vacinas produzidas pelo Butantan
e pela Fiocruz e a aplicação das primeiras doses na população trazem esperança
e alívio, mas estão longe de colocar um fim à tragédia que já levou à morte
quase 210 mil brasileiros.
A
saga da vacinação contra a covid-19 é mais um reflexo do problema de
coordenação gerado deliberadamente por Bolsonaro desde o início da pandemia por
motivos políticos e ideológicos. Sem uma gestão unificada para o enfrentamento
da crise e a busca de soluções, os governos federal, estaduais e municipais
lançaram-se numa corrida na qual toda a população saiu perdedora.
Ao
contrário de outras nações, que desde o princípio negociaram com diversos
fornecedores para minimizar o risco, o Brasil errou na sua estratégia de apostar
todas as fichas em apenas dois laboratórios. As 160 milhões de doses
contratadas junto à AstraZeneca e à Sinovac não serão suficientes para atender,
em duas rodadas, um país com 210 milhões de habitantes - mesmo que a Fiocruz
alcance o objetivo de produzir outras 110 milhões de unidades entre agosto e
dezembro.
Segundo o Plano Nacional de Vacinação, haveria ainda a intenção de adquirir 108 milhões de ampolas da Pfizer/BioNTech e da Janssen, mas os contratos sequer foram assinados, e há a promessa de receber outras 42,5 milhões do consórcio Covax Facility, mas sem um cronograma de entrega definido.
É
verdade que poderíamos recorrer aos países que pecaram pelo excesso e
contrataram além do que precisavam, mas isso seria um feito surpreendente para
um corpo diplomático cuja cúpula se especializou em destruir pontes nos últimos
dois anos.
Enfim,
mesmo no melhor dos cenários, em função do tempo necessário para a entrega,
distribuição e aplicação em duas etapas, é fato que teremos que conviver com
uma oferta limitada de vacinas por um bom tempo.
‘Contágio’,
filme de 2011 dirigido por Steven Soderbergh, tornou-se um caso raro de sucesso
tardio de audiência. Ao imaginar uma pandemia que se dissemina rapidamente pelo
mundo a partir de uma contaminação em um mercado de alimentos silvestres na
China, a ficção fez sucesso no ano passado tamanhas eram as semelhanças com o
momento em que vivemos.
Na
obra, a tão esperada proteção foi decidida por sorteio, de acordo com a data de
aniversário dos indivíduos. Mas a vida, principalmente por aqui, é muito mais
complexa do que a arte.
Com
uma baixa disponibilidade imediata de doses e uma doença que se alastra em
ritmos diferentes tanto em termos regionais quanto em relação a estratos
sociais e demográficos, enfrentaremos em breve dilemas difíceis de serem
equacionados - e a incapacidade governamental de lidar com eles será exposta de
novo.
O
plano anunciado pelo Ministério da Saúde estabelece os grupos prioritários
(trabalhadores da área de saúde, idosos, aldeias indígenas, ribeirinhos,
quilombolas etc); porém, não define os critérios que devem nortear sua
distribuição.
Com
poucas doses, como será a logística da aplicação das seringas e o seu
cronograma de alocação ao longo das próximas semanas e meses? Qual será a “taxa
de risco” anunciada ontem pelo ministro Pazuello para priorizar cidades em
situação de colapso, como Manaus? E dentro de cada localidade, a quem caberá
determinar quem recebe primeiro a imunização no âmbito de cada grupo? Como
serão definidas as prioridades entre os prioritários? São respostas para as
quais a equipe de Bolsonaro até agora não deu resposta.
Em
países como Inglaterra e Portugal, que têm sistemas universais de saúde com
prontuários unificados, foi possível organizar a oferta levando em conta as
situações de cada indivíduo, de forma que as pessoas estão recebendo por
correio, SMS ou email informações com local, dia e hora em que receberão as
agulhadas.
Como
ao longo de décadas o SUS não recebeu os investimentos necessários para ter tal
grau de organização, em breve viveremos os efeitos típicos de uma escassez
extrema.
O
mais comum deles é a fila. Há poucos meses vimos milhões de brasileiros se
aglomerando diante das agências da Caixa Econômica e da Receita Federal
tentando resolver problemas relacionados ao auxílio-emergencial. Da noite para
o dia “descobriram-se” 40 milhões de “invisíveis” - pessoas que não constavam
nos cadastros sociais e estavam à margem do mercado formal de trabalho.
Por
não conhecer a imensa maioria de seus cidadãos (onde moram, qual seu histórico
de saúde, quem possui comorbidades), a desorganização se repetirá com a
vacinação. Como resultado, nas próximas semanas seremos expostos a uma reprise
de cenas de pessoas dormindo em filas ou se acotovelando na frente de postos de
saúde em busca da imunização.
Sem
critérios claros para a distribuição individual, em alguns casos prevalecerá a
lei do mais forte (ou do mais próximo). Categorias começam a se articular para
pressionar institucionalmente por atendimentos prioritários, como já aconteceu
com membros da elite do Judiciário e do Ministério Público. Quando as doses
forem entregues aos municípios, é bem provável que muitos espertalhões consigam
furar a fila na base de relações de parentesco, amizade ou influência junto a
poderosos locais.
A
falta de vacinas também gerará oportunidades de corrupção. No país da
impunidade, os incentivos estão dados para quem quiser cobrar “por fora” ou
condicionar agulhadas a promessas de votos.
Como
sempre acontece quando o Estado falha na prestação de seus serviços, florescerá
também um vantajoso mercado. Laboratórios e grandes empresas já se movimentam
para obter autorização governamental. Com baixos estoques e uma longa espera na
rede pública, o setor privado terá condições de discriminar a oferta para quem
se dispõe a pagar o preço que for cobrado.
Millôr
Fernandes dizia que “o grande erro da natureza é a incompetência não doer”. A
gestão da pandemia do governo Bolsonaro comprova que ela não apenas dói, como
asfixia e mata.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário