segunda-feira, 8 de março de 2021

Celso Rocha de Barros* - Vale a pena apoiar o genocídio?

- Folha de S. Paulo

Governo Bolsonaro será reconhecido como criminoso se a política voltar ao normal

Não há mais nenhuma projeção razoável em que o número de brasileiros mortos na pandemia de Covid-19 fique abaixo de 300 mil. Essa marca deve ser alcançada no final deste mês ou no começo do próximo.

Se governadores e prefeitos tiverem grande sucesso com as medidas restritivas que estão adotando, talvez consigamos evitar os 350 mil. O que decidirá se ficaremos mais perto do terço de 1 milhão de mortos, do meio milhão de mortos ou do 1 milhão inteiro será a corrida entre as novas variantes mais contagiosas do vírus, as vacinas que Bolsonaro não comprou e o lockdown que Bolsonaro tenta proibir.

Pois bem, talvez interesse ao leitor saber que, enquanto tudo isso acontece, muita gente, entre os ricos e poderosos, civis e militares, ainda pensa o seguinte:

“Certo, o governo Bolsonaro causou essa mortandade toda. É bonito? Não é bonito. Por outro lado, ele não perdeu popularidade nos primeiros 200 mil cadáveres. Talvez sobreviva a mais 200 ou 300 mil cadáveres. Enquanto Bolsonaro tiver chance de reeleição, é melhor continuar a apoiá-lo, ou, ao menos, esperar para ver quantas centenas de milhares de cadáveres são necessárias para que um presidente brasileiro comece a perder voto”.

O cenário com que essa turma conta é o seguinte: o acordão continuaria barrando o impeachment de Bolsonaro. Centenas de milhares morreriam, mas imediatamente perderiam o título de eleitor. A capacidade de os brasileiros se importarem com quem morreu continuaria tão baixa quanto foi em 2020.

Em algum momento a vacina chegaria, pois os outros países já teriam se vacinado e sobraria imunizantes para retardatários como o Brasil. Nesse quadro, a vacina poderia causar uma recuperação da economia no final do ano ou no começo do próximo, o que poderia reeleger Bolsonaro.

Vou dar aula de moral e cívica sobre o valor da vida humana para essa turma? Eu não. Só tentaria quem não os conhecesse. Mas fica um aviso à turma de sempre: pode dar errado.

O auxílio emergencial neste ano será bem menor. Talvez uma população indiferente a 100 mil mortos não seja indiferente a 300 mil, até pelo aumento da probabilidade de ser sorteado pelo vírus. Montar um acordão de impunidade da Covid tão logo depois do acordão contra a Lava Jato é testar muito a paciência do eleitorado.

No fim do ano, muitos recursos que poderiam ter vindo para o Brasil agora já terão ido para países que vacinaram mais cedo. E a vacina não trará de volta apenas a atividade econômica: também trará os protestos de rua. Deem uma olhada no que está acontecendo no Paraguai enquanto conversamos.

Houve um sentimento geral de que Bolsonaro se fortaleceu com a eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara. Como vai essa ideia? Desde que “recuperou as rédeas do poder”, Bolsonaro fez uma bagunça na Petrobras e desistiu publicamente de combater a pandemia. Parece ter sido mais um daqueles “agora o governo Bolsonaro começa de verdade” que falhou. Não sei quantos desses cabem em um mandato.

Enfim, quem quiser continuar apostando em Bolsonaro tem que se lembrar do seguinte: está se amarrando a algo que certamente será reconhecido como criminoso se a política brasileira voltar ao normal. E a probabilidade de isso acontecer na eleição de 2022 pode estar começando a subir.

*Celso Rocha de Barros é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

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