Há
vacina contra a boçalidade?
“O regime parlamentar não tem o dom de fazer
cogumelar estadistas geniais. Mas é incontestável que esse regime não admite
que um tenentinho ignorante pule da tarimba para a chefia do poder, sem
preparo, sem conhecimento de qualquer espécie”. A crítica de Medeiros e
Albuquerque, em “O Regime Presidencial do Brasil” (1914), permanece atual.
Medeiros
rebatia críticos como Lauro Muller que alegavam que a república presidencial
havia feito algo que a monarquia parlamentarista nunca havia conseguido:
eliminar a febre amarela. Foi a ciência a responsável, argumentou. Antes da
descoberta do vetor “fosse o Brasil império, reino, teocracia, república
presidencial ou parlamentar nenhum governo podia extinguir a febre amarela no
Rio de Janeiro”. Mas insistia que o parlamentarismo era vacina eficaz contra a
boçalidade.
Ignorância e incompetência voltaram à baila. Sim, outsiders despreparados e sem liderança —moral ou política— representam um risco inominável em emergências, como a que estamos vivendo. Embora os governantes se beneficiem do clima de união de todos face à crise, esta janela de boa vontade coletiva se fecha se ela se prolonga.
Calamidades
jogam luz sobre o desempenho dos governantes, desvelando aspectos que em
situações normais passam despercebidos.
A
descoberta da vacina havia mudado a dinâmica política da pandemia porque
nacionalizou o padrão fragmentado de “27 epidemias” vigente. A responsabilidade
política pela vacina é inequivocamente federal, embora no caso da Coronavac
a liderança de Doria tenha criado um contraponto federativo temporário importante.
Com
a difusão da pandemia, a nacionalização da responsabilidade política se
completou. Com isso, o governo federal que poderia ter auferido ganhos
políticos até 2022 com uma vacinação nacional entrou em uma dinâmica de difícil
reversão dado a sucessão de descalabros que observamos.
A
estratégia de deslocar a culpa para estados e municípios esgotou-se. Tampouco
funciona mais a mobilização em torno de questões de corrupção subnacional
quando o governo iniciou um abraço com o centrão e enfrenta denúncias
gravíssimas no próprio clã presidencial. E mais importante: a escalada de
óbitos pela Covid já atingiu valores que torna supérflua a discussão sobre o
trade off economia versus saúde.
A
nova política da atenção dá saliência ao risco de políticas públicas
desastrosas que foram eclipsados no debate público pela crítica maximalista de
risco de morte da democracia.
Medeiros
mirou alto: no provável nexo inelutável entre instituições e competência. É
bastante, por ora, enfrentar o desafio que a falta desta última nos coloca.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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