Bolsonaro
afirmou que lockdowns “não funcionaram em lugar nenhum do mundo”. É cascata,
como tudo que escorre da boca do presidente. Doria retrocedeu São Paulo para a
“fase vermelha”. Atenção: não é, nem de longe, lockdown. Brasil afora, em meio
à escalada da pandemia, governadores e prefeitos tornaram-se alvo de um
bombardeio de críticas por não declararem lockdowns. No caso, os gestores têm
razão: lockdown, só usa quem pode.
Lockdown
é um extensivo congelamento da economia e da sociedade. Só os setores mais
essenciais são autorizados a funcionar. A circulação de pessoas é restringida
ao máximo. Funciona, pois a drástica redução de interações sociais ao longo de
dois a três meses diminui radicalmente a taxa de transmissão do vírus. Não é,
porém, uma varinha mágica. Como persiste alguma mobilidade social, e o vírus
atravessa, impávido, a porta das residências, continuam a ocorrer contágios.
Lockdowns não substituem a imunização coletiva.
A Nova Zelândia eliminou o vírus combinando lockdowns com fechamento de fronteiras. O sucesso, replicado por raros países, deve-se à circunstância de que, na etapa inicial (e oculta) da pandemia, as ilhas neozelandesas não experimentaram elevadas taxas de contágio. Hoje, porém, a reabertura de fronteiras depende da vacinação em massa da população. Na Europa, os lockdowns só conseguiram achatar temporariamente as curvas pandêmicas, impondo repetições do traumático processo.
O
lockdown tem impactos políticos, econômicos, sociais e psicossociais
devastadores. A restrição de direitos e liberdades, as perdas de negócios e
renda, a insegurança e a solidão que provocam não devem ser menosprezados. Como
a amputação, lockdown é um recurso extremo destinado a salvar o bem mais
precioso — no caso, a funcionalidade do sistema hospitalar. Bolsonaro é incapaz
de entender isso, mas as sociedades modernas proíbem-se, moralmente, de
assistir à morte de pacientes sem atendimento.
Estados
totalitários, como a China, podem deflagrar lockdowns à vontade. Basta girar a
chave do maquinário estabelecido de controle social. Nas nações democráticas,
há pré-condições indispensáveis para implantar o lockdown: um consenso político
mínimo, um nível razoável de coesão social e o monopólio estatal do uso da
força. Os EUA jamais aplicaram um lockdown nacional pela ausência da primeira
dessas condições. No Brasil, faltam as três.
O
voto tem consequências, acima e abaixo do Equador. Bolsonaro ainda comanda
cerca de um terço dos eleitores e conta com um apoio amorfo de uma maioria
parlamentar, como ficou evidenciado na eleição das mesas do Congresso. Nas
esferas estadual e municipal, o bolsonarismo representa uma força política
significativa. Não se fará lockdown sob o atual governo. O Brasil vive — e
morre — com suas escolhas democráticas.
Nas
nações europeias, formadas por extensas classes médias, os lockdowns
sustentaram-se sobre o pilar do Estado de Bem-Estar. As duras restrições foram
compensadas por políticas de preservação das empresas e dos empregos. Nada
disso evitou a eclosão de manifestações de massa contrárias às medidas
sanitárias emergenciais. No Brasil, porém, a extensão da pobreza e da
informalidade exigiria, para a imposição de lockdown nas nossas derramadas
periferias urbanas, a mobilização generalizada dos aparatos de repressão. Os
gestores, felizmente, não se engajarão em desvarios desse tipo. Nota
importante: a esquerda que clama por lockdown seria a primeira voz a condenar
as violências policiais decorrentes.
O
Brasil não é Araraquara. Há tempos, o Estado brasileiro perdeu o controle sobre
a totalidade do território nacional. No Rio de Janeiro, um lockdown exigiria
negociações das autoridades com chefes de milícias e do narcotráfico, algo que
também seria necessário em favelas fincadas noutras metrópoles. Quando Eduardo
Paes descarta a alternativa, não opta pela morte, mas meramente pelo realismo.
Compreendo o desespero dos epidemiologistas que exigem lockdown. Desconfio do discernimento dos comentaristas políticos que ecoam o mantra desses dias sombrios.
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