terça-feira, 13 de abril de 2021

Aylê-Salassié F. Quintão* - Sociedade dos órfãos (wolfskinder)

Difícil ter a coragem de Nietzsche para proclamar que “Deus está morto!”, ou mesmo para afirmar que ele não existe. Há outras opções. Mas, nada impede de perguntar: “Onde está Deus?” A menos que o ser humano esteja às portas de uma Gomorra, e não perceba. A dúvida aqui é  se Deus está ao nosso redor, como ele pode tolerar tanto mal?!

Assusta  a quantidade de crianças órfãs que a pandemia está gerando no mundo. A cada 13 mortes por coronavírus, uma perdeu um dos pais. Estudo publicado semana passada na revista de saúde coletiva Jama Pediatrics estima que entre 37 mil  a 43 mil crianças podem ter perdido ao menos um dos pais para a Covid-19, somente nos Estados Unidos.  Mas, o drama é planetário.

 No Brasil, pesquisa realizada com o aval da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, até fevereiro deste ano, a quantidade de crianças de 0 a 17 anos que perdeu os pais aumentou de 17% a 20% em relação aos anos anteriores, quando nem se pensava em pandemia.

A Covid trouxe a desaceleração dos sistemas produtivos, o crescimento assustador da fome no mundo que, antes do flagelo dessa peste já atingia quase um bilhão de pessoas, a morte em massa para os idosos, e o aumento vertiginoso  do número de crianças e jovens órfãos no mundo. Imagine o que está acontecendo na África.

Faz lembrar o destino dos filhos dos revolucionários argentinos cujos pais foram mortos na ditadura. A saga das “crianças lobo” (wolfskinder) da Prússia Oriental, perto de  25 mil sobreviventes errantes  escondidos nas florestas da Prússia Oriental e na Lituânia. Eram conhecidas como  "vokietukai” ("alemãezinhos”). Ao passarem pelos vilarejos encontravam, em frente das portas das casas, tigelas de sopas deixadas por alguns cidadãos, enquanto outros  traziam cachorros para espantá-los. São inúmeras e dramáticas as histórias. Entre elas está a das duas meninas judias que perambularam miseráveis,  sozinhas, pela Europa, sem encontrar um lar.

Levadas para abrigos na Lituânia e para os kolkhotz na Rússia, essas crianças eram obrigadas a trabalhar para cobrir o que consumiam, sem receber educação ou   afeto. E aquelas que sequer nasceram: para salvar a vida de mulheres grávidas em Auschwitz, onde eram submetidas a todos os tipos de abusos, a ginecologista judia romena Gisella Perl induziu a centenas de aborto.

- Mas, Senhor! Como pode permitir isso?!...

Há quem entre lá no Instagram oferecendo esperança e solidariedade às crianças que remanescem sozinhas na pandemia. “Queremos te ajudar a descobrir o que Deus tem para você!” Fico com pé atrás. Êpa! Que é isso?!  Mas também  não dá para esquecer aquelas histórias da Segunda Guerra, ou as crianças que perambulam abandonadas nas ruas das grandes cidades brasileiras. Religiosos têm ajudado a abriga-las.  Deus estaria com eles?!

Não sei se acredita em Deus ou se confia é no Estado mas, em dúvida, o assustado senador médico Rogério Carvalho (PT-SE) apresentou um projeto de lei ao Congresso (PL 887/2021) destinado a assegurar uma pensão especifica para crianças e adolescentes, cujos pais foram vítimas da covid-19.  Os programas sociais de governo não estão conseguindo conter essa miserabilidade extensiva que mata as crianças deste país. Não se comenta, mas a orfandade é crescente.  O senador propõe que o Estado desembolse um salário mínimo para cada órfão até que atinja a maioridade.

Sem crianças sadias e educadas, o cenário futuro não é alentador. Não se trata apenas da pandemia em si, mas das consequências sociais que está gerando. Em princípio, as vítimas maiores são os idosos. Mas não é bem assim. As estatísticas mostram que houve um aumento de 52% nas mortes por covid de pessoas  com idade até 40 anos (3 a 4 adolescentes entre elas). Pensando sociologicamente, trata-se, no primeiro caso, de uma renovação pandêmica geracional e, no segundo, de uma redução da resistência às transformações que se quer na História.

Cabe uma reflexão: que mundo está sendo reservado para o homem pós-pandêmico? Não adianta ficar insistindo em reajuste de salários e privilégios, na venda de automóveis de luxo, colchão que só os europeus têm, viagens baratas para paraísos já infectados e em políticos excessivamente contaminados pelas ideologias ou, o oposto, pela alienação. A Terra precisa sobreviver. Não será Marte que salvará essa geração. Os wolfskinder estão aí.  O projeto de lei vem em boa hora, mas essas crianças precisam, sobretudo,  de atenção e afeto humano.

*Aylê-Salassié F. Quintão (jornalista e professor) e Alexandre Q.F. Quintão (fisioterapeuta, pós-graduado em gerenciamento de projetos em saúde coletiva)

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