A
ordem do dia alusiva ao golpe de 1964 foi assinada por Walter Braga Netto, um
ministro da Defesa que acabava de ser nomeado em substituição a seu camarada de
farda, Fernando Azevedo e Silva, demitido por recusar a subordinação das Forças
Armadas aos delírios subversivos de Jair Bolsonaro. No texto, o general vestiu
o manto do historiador para, supostamente, inscrever os “eventos ocorridos há
57 anos” no “contexto da época”.
Sabe-se
que a ordem do dia estava pronta, assinada por Fernando Azevedo, e foi
deliberadamente adotada por seu sucessor para exibir uma imagem de unidade dos
comandantes militares. Por isso, deve ser lida como um consenso das cúpulas das
Forças Armadas. Seu aspecto mais notável é a tentativa implícita de enterrar o
“movimento de 1964” no arquivo do passado.
O general-historiador aprecia o conceito de continuidade e a ideia de harmonia. No texto, o golpe de 31 de março emerge na moldura da Guerra Fria, como derivação longínqua da aliança de guerra contra o nazifascismo, que teve a participação do Brasil. As Forças Armadas não aparecem como agentes principais da derrubada do governo, mas como componente de uma mobilização nacional que abrangeu a “imprensa”, “lideranças políticas”, “igrejas”, o “segmento empresarial” e “setores da sociedade organizada”. Por essa via, a virtude — ou a culpa — fica amplamente distribuída.
Um
golpe de Estado constitui, pela sua natureza, uma cisão. Mas a narrativa de
Braga Netto exclui a noção de ruptura, tanto para trás quanto para frente. De
1964, o texto salta à Lei de Anistia, de 1979, “um amplo pacto de pacificação”,
desviando dos “anos de chumbo” da tortura, que se estenderam até 1976. A
acrobacia converte o regime militar em prelúdio necessário das “liberdades
democráticas que hoje desfrutamos”. Ditadura produz democracia — a tese
paradoxal forma o núcleo do argumento do general.
O
exercício historiográfico faz parte da operação política de confrontação dos
chefes militares com Bolsonaro. As Forças Armadas declaram-se, hoje,
“conscientes de sua missão constitucional” de “defender a Pátria” e “garantir
os Poderes constitucionais”. Há, aí, convenientemente oculta, a crítica do
golpe de 1964 e, quase explícita, a rejeição dos desvarios golpistas
presidenciais. Braga Netto inclina-se à doutrina adotada pelos comandos
militares que, desde o processo de abertura, riscaram uma linha no chão
separando os quartéis da política.
Na
última frase da ordem do dia, tudo que era sólido desmancha no ar. Depois da
constatação do óbvio (“o movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do
Brasil”), surge uma conclamação: “Assim devem ser compreendidos e celebrados os
acontecimentos daquele 31 de março”. Nela, a conjunção aditiva liga posturas essencialmente
diferentes e expõe a fraude.
O
historiador busca compreender o passado, mas nunca o celebra. A celebração do
golpe militar é um ato político — e, no caso, um gesto condenável, pois nossa
Constituição protege a ordem democrática. Atrás do manto que cai, avulta a
figura de um agente político. Os militares que servem a Bolsonaro, inclusive os
da reserva, reintroduzem a política nos quartéis — mesmo quando afrontam a
vontade presidencial.
Toda
instituição tem seus lugares de memória. Duque de Caxias e o Marquês de
Tamandaré, patronos do Exército e da Marinha, remetem à Guerra do Paraguai.
Eduardo Gomes, patrono da Força Aérea, remete à Segunda Guerra Mundial. Por que
os militares insistem em celebrar o golpe de 1964, mesmo que sob o pretexto de
inscrevê-lo no “contexto da época”?
O governo Bolsonaro representa, entre tantas coisas deploráveis, um projeto de revisionismo histórico. O presidente, um capitão excluído do Exército por indisciplina, assim como seu círculo de místicos extremistas, ergue contra a Constituição o espectro da ditadura militar. A geração atual de militares não participou dos desmandos do regime instituído em 1964. Inexiste um motivo legítimo para que seus expoentes manchem suas biografias associando-se ao revisionismo bolsonarista. Não celebrem um parêntesis sem glória.
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