segunda-feira, 5 de abril de 2021

Eduardo Affonso - A mitomania como método

- O Globo

No começo de 2020, o presidente da República sugeriu aos jornalistas: “Sigam o exemplo do governo; adotem o lema João 8:32”. O versículo (“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”) tinha aparecido, um ano antes (em grego, com legenda em português), no discurso de posse de um agora ex-ministro. A patacoada toda, que incluía citações em latim e tupi, girava em torno de um mito: “O presidente Bolsonaro está libertando o Brasil, por meio da verdade”.

Só faltou ser criado, como em “1984”, um Ministério da Verdade para garantir que, de 2019 em diante, houvesse o primado de um tipo particular de mentira: a que se quer validar, por obra da alquimia da repetição.

(“Mentem / de corpo e alma, completamente. / E mentem de maneira tão pungente / que acho que mentem sinceramente.”)

— Convoco cada um dos congressistas para me ajudarem [sic] na missão de restaurar e de reerguer nossa pátria, libertando-a, definitivamente, do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica, disse o presidente que se empenharia em boicotar o combate à corrupção, flertar com a irresponsabilidade fiscal e praticar o servilismo ideológico (a persistir alguma dúvida, Donald Trump deverá ser consultado).

— Reafirmo meu compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão, disse o presidente que mais investiu na intolerância e no aprofundamento do fosso cavado por um antecessor.

(“Mentem e calam. Mas suas frases / falam. E desfilam de tal modo nuas / que mesmo um cego pode ver /a verdade em trapos pelas ruas.” )

— Somos incansáveis na luta contra o coronavírus, disse o presidente que ainda não se cansou de negar ou minimizar a pandemia.

— Solidarizo-me com todos aqueles que tiveram perdas em sua família, disse o presidente que não é coveiro. O que compraria “qualquer vacina” aprovada pela Anvisa (“da China, nós não compraremos”).

— Uma de minhas prioridades é proteger e revigorar a democracia brasileira, disse o presidente que comemora golpe de Estado, sonha com atos institucionais, suspira por um estado de sítio. (“Mas não se chega à verdade / pela mentira, nem à democracia /pela ditadura.”)

— Montamos nossa equipe de forma técnica, sem o tradicional viés político que tornou o Estado ineficiente e corrupto, gabou-se o presidente que militarizou o poder e acaba de barganhar parte dele com a ala mais fisiológica do Congresso, que mais tem contribuído para a ineficiência e a corrupção do Estado.

(“Mentem como a careca / mente ao pente, / mentem como a dentadura / mente ao dente, / mentem como a carroça / à besta em frente.”)

Mentiras e feiquenils (melhor aportuguesar; já são de casa) fazem parte do kit desinformação, com as bravatas, as ameaças, os “se colar, colou”. “O presidente está libertando o Brasil, por meio da verdade” é novilíngua, parte da mitomania que sustenta o mito.

“(...) mente, mente, mente. / E de tanto mentir tão brava/mente / constroem um país / de mentira /—diária/mente.”(Affonso Romano de Sant’Anna, mais atual que em 1980).

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