No
começo de 2020, o presidente da República sugeriu aos jornalistas: “Sigam o
exemplo do governo; adotem o lema João 8:32”. O versículo (“Conhecereis a
verdade, e a verdade vos libertará”) tinha aparecido, um ano antes (em grego,
com legenda em português), no discurso de posse de um agora ex-ministro. A
patacoada toda, que incluía citações em latim e tupi, girava em torno de um
mito: “O presidente Bolsonaro está libertando o Brasil, por meio da verdade”.
Só
faltou ser criado, como em “1984”, um Ministério da Verdade para garantir que,
de 2019 em diante, houvesse o primado de um tipo particular de mentira: a que
se quer validar, por obra da alquimia da repetição.
(“Mentem
/ de corpo e alma, completamente. / E mentem de maneira tão pungente / que acho
que mentem sinceramente.”)
—
Convoco cada um dos congressistas para me ajudarem [sic] na missão de restaurar
e de reerguer nossa pátria, libertando-a, definitivamente, do jugo da
corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão
ideológica, disse o presidente que se empenharia em boicotar o combate à
corrupção, flertar com a irresponsabilidade fiscal e praticar o servilismo
ideológico (a persistir alguma dúvida, Donald Trump deverá ser consultado).
— Reafirmo meu compromisso de construir uma sociedade sem discriminação ou divisão, disse o presidente que mais investiu na intolerância e no aprofundamento do fosso cavado por um antecessor.
(“Mentem
e calam. Mas suas frases / falam. E desfilam de tal modo nuas / que mesmo um
cego pode ver /a verdade em trapos pelas ruas.” )
—
Somos incansáveis na luta contra o coronavírus, disse o presidente que ainda
não se cansou de negar ou minimizar a pandemia.
—
Solidarizo-me com todos aqueles que tiveram perdas em sua família, disse o
presidente que não é coveiro. O que compraria “qualquer vacina” aprovada pela
Anvisa (“da China, nós não compraremos”).
—
Uma de minhas prioridades é proteger e revigorar a democracia brasileira, disse
o presidente que comemora golpe de Estado, sonha com atos institucionais,
suspira por um estado de sítio. (“Mas não se chega à verdade / pela mentira,
nem à democracia /pela ditadura.”)
—
Montamos nossa equipe de forma técnica, sem o tradicional viés político que
tornou o Estado ineficiente e corrupto, gabou-se o presidente que militarizou o
poder e acaba de barganhar parte dele com a ala mais fisiológica do Congresso,
que mais tem contribuído para a ineficiência e a corrupção do Estado.
(“Mentem
como a careca / mente ao pente, / mentem como a dentadura / mente ao dente, /
mentem como a carroça / à besta em frente.”)
Mentiras
e feiquenils (melhor aportuguesar; já são de casa) fazem parte do kit
desinformação, com as bravatas, as ameaças, os “se colar, colou”. “O presidente
está libertando o Brasil, por meio da verdade” é novilíngua, parte da mitomania
que sustenta o mito.
“(...) mente, mente, mente. / E de tanto mentir tão brava/mente / constroem um país / de mentira /—diária/mente.”(Affonso Romano de Sant’Anna, mais atual que em 1980).
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