A
politização da ciência desmorona face ao horror sanitário cotidiano
A
pergunta que dá título à coluna aponta para um oximoro; afinal, a ideia de
ciência está associada a imparcialidade, ceticismo, falsificabilidade. No
limite, o teste derradeiro é o conhecimento aplicado e embutido nos objetos ao
nosso redor; habitamos um mundo tecnológico em que as coisas
"funcionam". Mas a questão é mais complexa.
A
refutação do conhecimento científico ao longo da história combinou-se com
crenças religiosas; mas sua forma nova e mais insidiosa é a que assume que o
conhecimento tem lado. É partidário.
Com a pandemia, a questão assume obviamente grande saliência, porque os cientistas se tornaram protagonistas importantes do debate público. Mas já se manifestava antes dela irromper. Cass Sunstein e co-autores discutem a questão em "Would You Go to a Republican Doctor"? (Você iria a um médico afiliado ao Partido Republicano?), em que reportam os achados de um experimento publicado na revista de neurociência Cognition, em 2019.
Os
autores mostram que tomar conhecimento da filiação política de um
neurocirurgião ou matemático, por exemplo, afeta a percepção sobre sua
competência. É o chamado efeito halo, ou de "derramamento afetivo ou
epistêmico": o valor negativo atribuído a pessoas na dimensão política
"transborda" para outras dimensões. Mas há evidências de que efeito
similar ocorre não em relação a indivíduos, mas em relação aos cientistas como
grupo social.
Pesquisas
nos EUA mostram que a confiança na ciência declina em grupos republicanos há
décadas e é levemente ascendente em setores liberais. Mais importante: Matthew
Motta realizou experimento com painel de indivíduos antes e depois de uma
manifestação de cientistas —a Marcha pela Ciência, em 2017, a favor de
políticas contra as mudanças climáticas— e mostrou que a exposição ao evento
gerou forte polarização: a atitude dos liberais em relação
aos cientistas tornou-se ainda mais favorável, e a dos republicanos
mais negativa.
Assim,
as expectativas de que em nosso país o debate público fundado em argumentos
racionais possa levar a alguma forma de consenso parecem estar superestimadas:
apenas a comoção pública frente ao horror sanitário parece ser capaz de
produzir uma reação efetiva.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)
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