O Globo
Quinze meses de isolamento social, sem
escola de samba, alimento do espírito, sem abraço, conforto da alma, sem festa,
combustível da vida, aguardei com ansiedade juvenil a hora da vacina.
Cinquentona, sem doença crônica, de ofício não prioritário, percorri um hiato
de 150 dias entre a estreia da vacinação contra a Covid-19 na cidade do Rio de
Janeiro — dona Terezinha da Conceição, 80 anos, em 18 de janeiro, aos pés do
Cristo Redentor — e minha primeira dose, ontem. Convoquei a família, escolhi o
figurino, perdi o sono como na véspera do vestibular, avô do Enem. Com a
agulhada, chorei. De alegria, pela perspectiva de saúde; de pesar, pelo meio
milhão de brasileiras e brasileiros, alguns muito próximos, que ficaram pelo
caminho. Sob Jair Bolsonaro, o que era ação corriqueira de política pública
universal tornou-se ato político de defesa da vida. Vacinar-se é o verbo.
Foi Maria Bethânia, 75 anos hoje, quem melhor elencou os desejos brasileiros da temporada de doença e desgoverno: “Quero vacina, verdade, respeito e misericórdia”, pronunciou na única apresentação virtual com que nos presenteou na era do recolhimento. A ela, vida longa e farta. Faltou imunizante, sobrou mentira. Respeito não há, tampouco misericórdia. Está aí a CPI da Covid a nos assombrar diariamente com depoimentos, e-mails, ofícios e estudos que comprovam a estratégia criminosa de enfrentamento à pandemia: em vez de vacina, cloroquina; de distanciamento, aglomeração; de saúde, economia, como se oponentes fossem.
E assim segue. Faz uma semana, o presidente
da República defendeu o fim da obrigatoriedade de uso de máscara por
brasileiros imunizados ou inoculados pelo coronavírus. Lançou a ideia a um país
onde, por ato, omissão, inépcia ou incompetência, apenas 11,4% da população
adulta conseguiu receber as duas doses das vacinas até aqui disponíveis
(CoronaVac, AstraZeneca e Pfizer). Mais que irresponsabilidade, foi projeto
político de construção de uma nova identidade bolsonarista para se contrapor à
multidão de insatisfeitos, enlutados, indignados que, mascarada, tomou ruas por
“vacina no braço e comida no prato”, em fins de maio — e promete voltar amanhã.
O bom cabrito tira a máscara em obediência a Bolsonaro e, pior dos mundos,
ataca aqueles que, em respeito à ciência, cobrem nariz e boca para conter a
transmissão de um vírus já multiplicado em novas cepas.
No país assentado no genocídio indígena,
que silencia sobre a epidemia homicida de vidas negras, mesmo durante a mais
grave pandemia em cem anos, viver é resistência, envelhecer revolucionário. Já
escrevi isso anteriormente, ao desejar — e recomendar — a velhice em resposta
ao cotidiano de existências abreviadas que nos aterroriza. Volto ao tema,
porque, no ano e meio de crise sanitária, demógrafos já contabilizaram
diminuição de dois anos na esperança de vida dos brasileiros — a primeira queda
em sete décadas.
A desigualdade aumentou. Em um ano, segundo
a FGV Social, a renda média saiu do melhor (R$ 1.122, no início de 2020) para o
pior (R$ 995) nível de uma série iniciada em 2012. Há crianças e jovens fora da
escola. Tem gente com fome — dá de comer, ensina a campanha da Coalizão Negra
por Direitos, que nesta semana recebeu o apoio da organização social da pop
star Beyoncé.
Nunca estivemos tão infelizes. Na pandemia,
a percepção de felicidade pessoal caiu mais no Brasil do que na média de 40
outros países. Nocauteada por doença e luto, desemprego e desatenção, carestia
e miséria, a nação substituiu regozijo por frustração. Um em cada quatro
brasileiros (24%) respondeu, entre setembro e novembro do ano passado, que
sentiu raiva no dia anterior; em 2019, a proporção era de 19%. Seis em dez se
declararam preocupados; metade, estressada; um em três estava triste na
véspera.
Impossível ser feliz no território tornado
cemitério por ação deliberada de seu principal governante. Jair Bolsonaro,
diferentemente de outros líderes globais, não se vacinou — ou se imunizou
secretamente nos porões que habita. Hábito corriqueiro no país que tinha um dos
mais respeitados programas de imunização do planeta, vacinação virou ato
político. É agenda de compromisso com a vida, esperança de longevidade, gesto
de resistência. Ontem, vesti a camisa estampada com a imagem de Obaluaê, orixá
da cura, pus meus fios de contas de Iemanjá, ajustei a máscara PFF2 e ofereci
meu braço direito a Natália, profissional a serviço do Sistema Único de Saúde
(SUS), joia nacional. Vacinei-me por mim, por meus amores, por minha
ancestralidade afro-brasileira. E contra você, presidente.
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