O Estado de S. Paulo
Hoje é a extrema direita paranoica e
obscurantista que representa perigo real
Trinta anos atrás, em agosto de 1991, o
comunismo recebeu seu atestado de óbito, com a dissolução da União Soviética.
Morreu de morte morrida, provocada pela esclerose múltipla de um sistema
político e econômico dirigido por uma burocracia hipertrofiada a serviço de si
mesma.
Quando a Cortina de Ferro começou a se
entreabrir, o bloco soviético não resistiu à comparação com o nível de
bem-estar alcançado pelos países da Europa Ocidental, onde havia mais liberdade
e melhores condições materiais de vida. Gorbachev bem que tentou reformar o
sistema para evitar a dissolução da União Soviética, mas já era tarde demais.
Ela ruiu, assim como havia ruído o Muro de Berlim dois anos antes, marcando o
fim do domínio soviético sobre o Leste Europeu.
Mesmo antes de morrer, o comunismo já não representava ameaça ao Ocidente. Com a ascensão de Gorbachev à Secretaria-Geral do Partido Comunista da União Soviética, em 1985, as relações entre a pátria do socialismo e as potências capitalistas mudou definitivamente de natureza. “I like Mr. Gorbachev. We can do business together” (eu gosto do sr. Gorbachev. Nós podemos trabalhar juntos), disse ninguém menos que a conservadora primeira-ministra do Reino Unido Margareth Thatcher, depois de se encontrar em Londres com uma delegação de representantes soviéticos chefiada por Gorbachev, então estrela ascendente no Politburo. Era dezembro de 1984. Bom lembrar que a outra pátria do comunismo, a China, já havia normalizado desde a década anterior as suas relações com os Estados Unidos.
Para quem conhece a História é espantoso
que o comunismo tenha sido ressuscitado como arma política 30 anos após a sua
morte. Como disse o velho Marx, em adendo a Hegel, a História acontece duas
vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. A ameaça comunista hoje
só existe no discurso farsesco de uma extrema direita que faz da fabricação do
pânico um componente central da sua estratégia política. No passado, a ideia da
ameaça comunista era plausível, embora inflada para justificar golpes de Estado
e regimes autoritários, em especial na América Latina. Salvo no Chile, os
partidos comunistas nunca alcançaram grande expressão político-eleitoral.
Pequenos grupos mais radicais, que optaram pela via armada para combater
ditaduras, foram logo massacrados. Cuba foi um caso singular.
Quem representaria hoje o bicho-papão do
comunismo? Faz quase 50 anos, a China deixou de exportar revolução para
exportar produtos manufaturados, cada vez com maior conteúdo tecnológico. Mais
confiante que nunca na sua capacidade de superar os Estados Unidos como
potência econômica, busca também expandir seu poder e influência a outras
partes do mundo. Sua estratégia, porém, não passa por mudar regimes políticos,
muito menos por criar uma alternativa ao capitalismo, no qual aprendeu a nadar
de braçada, com estilo próprio. Ela representa um desafio às democracias
liberais, não uma ameaça ao capitalismo, como no passado representou a União
Soviética.
Teria a Rússia assumido esse papel? Nada
disso. Ex-agente da KGB, Putin é hoje um autocrata que apela à tradição
cultural e religiosa da Rússia czarista e empresta apoio à ultradireita
nacionalista europeia. Venezuela, um Estado falido, Cuba, que mal se aguenta
nas próprias pernas? Ora, tenhamos senso do ridículo.
Diante do evidente despautério, o
bolsonarismo se apropriou da ideia de que o comunismo teria reencarnado sob
novas vestes: o marxismo cultural. Essa categoria está para a compreensão do
mundo como a hidroxicloroquina está para a cura da covid. Serve como droga
política para arregimentar fanáticos e disseminar teorias conspiratórias. Faz
crer que existe uma ideologia que articula e impulsiona toda e qualquer
manifestação cultural e política de questionamento a visões ultraconservadoras
sobre a religião, a pátria, o Estado e a família. Junta no mesmo saco de
inimigos a combater o liberal que defende a liberdade de expressão e a
laicidade do Estado, as feministas que lutam pelos direitos das mulheres, o
ativista do movimento LGBT, o dirigente da ONG ambiental, o intelectual
“progressista”, o artista “devasso”, o libertário “maconheiro”, o jornalista da
“mídia lixo” e até mesmo militares ditos “bundas-moles”.
O velho anticomunismo tinha um pé na realidade. É fato que o Komintern (a 3.ª Internacional) existiu de 1919 a 1945 e que o movimento comunista internacional continuou a ter vida nas décadas posteriores, com centro União Soviética e partidos comunistas em diversos países. É fato que Cuba treinou guerrilheiros e financiou a luta armada. Já o bicho-papão do marxismo cultural é pura fabricação mental. O que existe é uma extrema direita paranoica e obscurantista. Os sinais dela estão por toda parte: na negação da ciência, no uso da religião para fins políticos, na indiferença à morte, no desrespeito à liberdade de expressão do pensamento, do afeto e da sexualidade, no estímulo ao ódio, na linguagem chula. Ela representa o perigo real. O comunismo é um inimigo imaginário, a seu serviço.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP
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