O Estado de S. Paulo
Temos consciência de nossa estagnação,mas
tudo indica que não queremos sair dela
“Durante
anos, puseram-se a fitar a superfície do mar. Aí, resolveram atirar-se à sua
última ousadia: ir aos confins do mundo, para ver o abismo. Partiram em viagem,
num barco muito pequeno. Entendiam como um sinal de esperança o fato de as aves
marinhas seguirem o barco até mar alto” Werner Herzog
Em sua inoportuna e disparatada comparação,
ao afirmar que seu povo veio para a América do Sul “em barcos”, o presidente
argentino omitiu um detalhe importante. Esqueceu-se de que a Argentina se
destaca no mundo inteiro como o país que durante décadas e décadas mais cedeu a
atração fatal do retrocesso. A atração pelo abismo. Tendo praticamente chegado
ao Primeiro Mundo, fez questão de regredir ao subdesenvolvimento. Não sob a
pressão de algum fator externo, como uma guerra, ou de alguma catástrofe
natural, mas movido apenas por seus desacertos domésticos, regrediu e
acomodou-se à pobreza comum em nosso triste Hemisfério.
Mas abstenha-se o roto de rir do
esfarrapado. Também no Brasil a atração pelo abismo existe e se manifesta de
forma notavelmente sistemática. Temos consciência de nossa estagnação, mas tudo
indica que não queremos sair dela.
Nosso desempenho no combate à covid-19 é
bem menos que mediano. Tratada com indiferença nas primeiras semanas, a
“gripezinha” já ceifou cerca de 500 mil vidas. Temos alguns bons laboratórios e
um excelente serviço de atendimento – o SUS –, mas sem os insumos que o resto
do mundo relutantemente nos fornece o que eles podem fazer é pouco. Pior ainda
é o bate-boca diário entre as autoridades governamentais – encabeçadas pelo sr.
Jair Bolsonaro – e os agentes de saúde – médicos, enfermeiros e outros – que se
expõem diretamente aos riscos dessa terrível emergência.
No âmbito das elites, públicas e privadas, querelas rigorosamente desprovidas de conteúdo sucedem-se dia após dia, levando o cidadão comum a supor que são apenas uma ópera-bufa concebida para ocultar a apropriação do público pelo privado. Falar de corrupção é chover no molhado. A verdade nua e crua é que os integrantes da atual geração política parecem ignorar a urgência das tarefas que lhes são afeitas, a missão que juraram cumprir e até os elementos litúrgicos que lhes incumbe observar. Na hora atual, o que mais vemos é a esgrima pré-eleitoral, a mais de um ano da data prevista para o pleito.
A incapacidade de sustentar políticas
econômicas racionais remonta, no mínimo, ao ciclo militar, notadamente ao
“crescimento em marcha forçada” projetado pelo governo do general Ernesto
Geisel. A única exceção a fazer é a contenção da inflação, levada a cabo pelos
governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Comentar os seis anos da
sra. Dilma Rousseff é perda de tempo. Na área educacional, a insensibilidade
que sucessivos governos têm demonstrado beira o inexplicável. No atual governo,
é cabível duvidar se o presidente da República já escolheu um ministro para a
pasta. Acrescento, por dever de ofício, que nosso sistema político – em particular
o sistema partidário - já de há muito adentrou o escorregadio terreno da
galhofa. Assim, o que nos resta é exaltar nossa posição como “uma das maiores
economias do mundo”, um biombo para o retrocesso.
Infelizmente, depois da comédia geralmente
vem a tragicomédia, que por sua vez costuma anteceder a tragédia. A imprensa
não se cansa de falar em golpe, e não é por falta de assunto. No que se refere
às Forças Armadas, temos a segurança do artigo 142, que as define como
“instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na
hierarquia e na disciplina”, tendo como destinação “a defesa da Pátria, a
garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem”. Mesmo assim, vez por
outra surgem motivos de preocupação. O número de oficiais da ativa recrutados
pelo presidente Jair Bolsonaro para funções na administração não tem precedente
em nossa História. Pior ainda, vimos outro dia o ex-ministro da Saúde, general
Eduardo Pazuello, participar de uma bizarra demonstração política ao lado do
presidente da República. Episódio, convenhamos, só aceitável nas mais infelizes
republiquetas deste Hemisfério.
As aparências podem enganar, mas nem sempre enganam. Cá da planície, tentando entender o que se passa em Brasília, o que muitos leigos julgam enxergar é um negaceio entre o sr. Bolsonaro e o Exército, ambos se movendo taticamente no ringue, cada um esperando a hora de assestar um golpe decisivo. O leigo não tem culpa, porque, na verdade, todos os golpes se parecem. Começam com arruaças, evoluem (ou involuem) para a convulsão social e, cedo ou tarde, desembocam na violência. E os atores do drama, como sói acontecer, consolados, contemplam as aves marinhas que os acompanham até mar alto.
*Sócio-diretor da Consultoria Augurium, é
membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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