Folha de S. Paulo
Voto impresso colocará democracia em xeque
O voto impresso,
se aprovado pelo Congresso Nacional, dará às milícias, oficiais ou
clandestinas, uma poderosa arma para controlar o sufrágio de uma parcela
significativa dos eleitores. Como na Velha República, em que o voto era aberto
—em bico de pena—, chefes locais poderão exigir comprovação de
lealdade daqueles que se encontram sob a mira de suas armas,
mantos religiosos ou relações de subordinação, no trabalho ou na caserna.
O voto impresso também poderá ser empregado para promover uma maliciosa judicialização dos resultados eleitorais, criando um ambiente de desconfiança favorável a insurgências, como a incentivada por Donald Trump nos Estados Unidos após sua derrota eleitoral —ressaltando que nossas classes armadas não têm a tradição de lealdade à Constituição demonstrada de forma unânime pelos comandantes militares norte-americanos, ao repudiar a investida das hordas trumpistas contra o Capitólio.
A insistência em relação ao voto impresso,
no entanto, também é uma perigosa arapuca armada para fragilizar o Supremo
Tribunal Federal que, desde o início da pandemia, tem dado sinais claros
—diferentemente do comando do Exército— de não estar disposto a capitular em
sua missão de guardar a Constituição.
Como “o voto direito, secreto, universal e
periódico” constitui um dos pilares centrais do edifício democrático, foi
protegido como uma cláusula pétrea. Dessa forma, não pode ser alterado, nem
sequer por emenda à Constituição, como disposto de forma cristalina pelo artigo
60, parágrafo 4º da Constituição Federal.
Ao reafirmar a letra da Constituição e
defender o voto secreto, como já teve ocasião de fazer em diversos momentos,
mas agora veiculado por uma emenda à Constituição, o Supremo estará fadado a
ser mais uma vez estigmatizado como “inimigo do povo”. O ataque do presidente
da República ao ministro Barroso, que foi à Câmara
dos Deputados defender a segurança e integridade do sistema de votação
eletrônica, é apenas uma amostra da ameaça de “convulsão” feita pelo
presidente caso um dos lados não aceite o resultado eleitoral.
Ao proclamar em tom de intimidação que ao
Supremo não cabe apreciar a constitucionalidade de emenda estabelecendo o voto
impresso, eventualmente aprovada pelo Congresso Nacional, o presidente reitera
sua constante disposição de forçar a cerca das instituições, não apenas com o
objetivo de se apropriar do sistema eleitoral, mas também de subjugar os
mecanismos de freios e contrapesos arquitetados pela Constituição Federal.
Assim como os direitos fundamentais, a
Federação e a separação dos Poderes, o voto direito, secreto, universal e
periódico não pode ser abolido, mesmo que por emenda à Constituição. Não se
trata de um capricho arbitrário do legislador constituinte, mas de um mecanismo
muito engenhoso voltado a proteger os pressupostos fundamentais do Estado
democrático de Direito de ciclos de populismo autoritário.
Nesse sentido, as cláusulas pétreas são uma
espécie de limitação habilitadora do processo democrático. Por seu intermédio,
a maioria, ainda que qualificada, se vê privada de colocar em risco os pilares
essenciais à sobrevivência do próprio jogo democrático.
Caso o Congresso Nacional se deixe seduzir por interesses imediatos e subalternos, aprovando o voto impresso, na expectativa de que Supremo assuma sozinho os custos de bloquear mais essa investida do populismo autoritário, estará plantando não apenas vento, mas a própria tempestade.
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