O Globo / O Estado de S. Paulo
A aceleração da inflação nos últimos meses
dá a impressão de que as contas públicas melhoraram
Ao cabo de longos meses de alarmante
deterioração das contas públicas, o país surpreende-se, agora, com o surgimento
de uma “folga fiscal” que — pasmem — permitiria expansão substancial dos gastos
primários do governo federal. Para não cair nesse conto, é preciso entender com
clareza o que vem sendo entendido como “folga fiscal”.
Para início de conversa, é bom lembrar qual
era o diagnóstico consensual, compartilhado pela equipe econômica do governo,
sobre o difícil quadro fiscal com que se deparava o país no início de 2020,
antes da eclosão da pandemia. Só a muito custo, fora possível sustar o
descontrole das contas públicas do governo Dilma Rousseff.
A dívida bruta do setor público saltara de 51,5% do PIB, em dezembro de 2013, para 66,7% do PIB, em maio de 2016, quando a presidente foi afinal afastada do cargo, para ser submetida a impeachment. Graças a esforços de controle fiscal do governo Temer e do primeiro ano do governo Bolsonaro, o endividamento público pôde, afinal, ser precariamente contido em cerca de absurdos 75% do PIB, até o início do ano passado.
Era então consensual que tamanho
endividamento era excessivo. E que o país tinha pela frente o enorme desafio de
promover as mudanças no regime fiscal que se faziam necessárias para conter a
expansão sem fim de gastos primários, abrir espaço no Orçamento para dispêndios
de caráter mais meritório e assegurar declínio paulatino da dívida pública como
proporção do PIB. E era exatamente isso que a equipe econômica do governo se
propunha a fazer.
Logo em seguida, no entanto, com o país
colhido em cheio pela pandemia, as preocupações com a consolidação fiscal
tiveram de ser momentaneamente deixadas de lado. Políticas de atenuação dos
desdobramentos socioeconômicos do combate à pandemia exigiram, em 2020, gastos
primários adicionais equivalentes a cerca de 7,5% do PIB. E, em fevereiro deste
ano, a dívida pública bruta bateu em quase 90% do PIB.
É nesse ponto que entra em cena a primeira
parte da estória da “folga fiscal”. Nos últimos dois meses para os quais há
dados disponíveis, março e abril, a dívida bruta do setor público vem caindo
como proporção do PIB. De 89,95%, em fevereiro, para 86,66%, em abril.
Entre os vários fatores que explicam tal
queda, merece destaque a rápida elevação do PIB nominal, que entra como denominador
no cálculo do endividamento público. Na esteira do forte aumento de preços
de commodities, amplificado pela depreciação do câmbio, a taxa anual de
variação do PIB nominal vem sendo anomalamente inflada.
A maior parte da recente redução da dívida
como proporção do PIB não decorre, portanto, de melhora do desempenho fiscal. É
mero efeito colateral do descontrole inflacionário que o Banco Central vem
tentando debelar.
Como a taxa de variação do PIB nominal, em
2021, poderá ser de dois dígitos, já há quem preveja que a dívida como
proporção do PIB possa cair a 82% no final do ano. Mesmo que isso ocorra, no
entanto, o endividamento ainda ficaria sete pontos percentuais acima dos já
excessivos 75% observados no início de 2020.
A segunda parte da estória da “folga
fiscal” também tem a ver com efeitos colaterais da aceleração da inflação que,
no caso, se farão sentir na aplicação da regra do teto de gastos. Como o valor
nominal do teto de gastos será corrigido, em 2022, por variação anomalamente
alta do IPCA, nos 12 meses terminados agora em junho, tudo indica que a
obediência à regra poderá comportar expansão substancial de gastos primários.
Não é surpreendente que, após ter tratado
como extra teto boa parte do aumento do dispêndio primário de 2020 e 2021, o
governo esteja agora ávido por se beneficiar dessa anomalia e voltar a expandir
seus gastos num ano de disputa eleitoral acirrada, como promete ser 2022.
O que não faz sentido é comemorar essa
brecha legal como uma bem-vinda “folga fiscal”, que justificaria saudável
expansão de gastos primários, num quadro de contas públicas tão obviamente
insustentáveis. Só com muito autoengano na veia.
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