Folha de S. Paulo
Para montar coligação para disputar o
poder, é fundamental querer a mesma coisa
Façamos um esforço para enxergar a eleição
presidencial do ano que vem além desses dias acanalhados, embora seja grande a
tentação de fazer a crônica policial deste governo, apontando a sua atuação
fanaticamente criminosa. Mas não resisto a uma pergunta: cadê Eduardo
Pazuello no
imbróglio da Covaxin?
Retorno ao prazo mais longo. Ainda que eventos
recentes tenham tornado mais evidentes os aspectos grotescos da turba que
nos governa, é inevitável constatar que, em muitos aspectos, os reacionários
ganharam terreno.
Noto, mesmo em ambientes infensos à pregação fascistoide, uma hesitação em chamar o inaceitável por aquilo que é. O golpismo, o negacionismo, o racismo, a misoginia, a homofobia e o "milicianismo" policial são o outro lado da civilização, não uma ideologia entre muitas —e todas são, a seu modo, restritivas, com uma carga de conceitos preconcebidos que a realidade não endossa.
Tais postulações não podem ser toleradas
como um ponto de vista possível entre outros possíveis. Ao contrário, devem ser
denunciadas por aquilo que são: crimes. A questão é também eleitoral. Milhares
de pessoas saíram às ruas para pedir o impeachment de Jair Bolsonaro, em
manifestações com vários tons de vermelho. Nem poderia ser diferente.
Não vai aqui juízo de valor, mas apreciação
objetiva: a pauta da inclusão tem o DNA da esquerda, tanto quanto a da
moralização da vida pública é geneticamente direitista. E ambas, vamos convir,
pedem um Estado forte para a realização dos seus propósitos, certo? A história
recente do Brasil evidencia que assim é.
Estamos tratando de posições inconciliáveis
em tempos normais. Não é que a esquerda, por princípio, mande às favas os
escrúpulos para fazer justiça social. Não é que a direita passe por cima dos
"mendigos" de Paulo
Guedes —aos quais se darão sobras dos restaurantes— para enxugar o
Estado e combater a corrupção. Isso tudo é caricatura. Os instrumentos de
intervenção de um e de outro lados, com os quais pretendem realizar o bem
comum, são distintos. E, cá na minha inocência benfazeja, aspiraria a que se alternassem
no poder.
Mas vivemos, como num poema, o tempo em que
todos os bares se fecharam e as virtudes se negaram. Para que se faça uma
coligação para disputar o poder, é fundamental que as pessoas queiram a mesma
coisa. Trata-se de uma união afirmativa, ainda que restem campos que são
inconciliáveis. De todo modo, é preciso haver convergência nos quereres. Uma
frente ampla de oposição, que é coisa muito distinta de uma frente eleitoral,
comunga as rejeições.
A pergunta sai agora a seco: existe, de
fato, a chance de uma frente que se oponha ao horror? Não se trata de uma
cobrança ou de uma patrulha, mas de uma dúvida generosa e serena. Os grupos
hoje identificados com o chamado "centro" e com a direita democrática
—não bolsonarista— conseguem levantar a sua voz, além das atuações individuais
no Congresso ou nas redes sociais, para fazer a defesa dos valores que plasmam
as sociedades democráticas?
Se é assim, então os realmente liberais,
por exemplo, podem se juntar com as esquerdas, em marchas virtuais ou reais,
ainda que o "companheiro dos outros" esteja a vituperar contra pautas
que a esses liberais e centristas pareçam essenciais para garantir eficiência
ao Estado. Dos pré-candidatos postos, só um tem discurso e prática disruptivos,
que acenam com um horizonte escatológico, em que a democracia passa a ser
irrelevante.
O
país já iniciou a contagem regressiva para os 600 mil mortos. As forças que
reivindicam o centro ou a direita no terreno de oposição são capazes de
evidenciar —agora e no segundo turno— a sua absoluta incompatibilidade com
aquilo que Bolsonaro representa?
Ou se reitera na estúpida ilusão de que se
possam amansar o golpismo, o negacionismo, o racismo, a misoginia, a homofobia
e o "milicianismo" policial —com
o bônus de que Guedes, afinal, defende privatizações, ainda que à moda
Eletrobras?
Dada a resposta a essa questão, o resto é
fácil e até óbvio. Não se trata apenas de eleger um governo. Eleger-se-á,
também, um mínimo civilizatório.
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