O Globo
Enquanto avança numa inesperada linha de
investigação de favorecimento a agente privado — quiçá corrupção — na compra da
vacina indiana Covaxin, a CPI da Covid deu importante contribuição à sociedade
brasileira em esmiuçar a dimensão da crise que já ceifou a vida de mais de meio
milhão de habitantes. Na sessão de ontem, Jurema Werneck, diretora da Anistia
Internacional Brasil e representante do Grupo Alerta, e Pedro Hallal,
epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas, deixaram claro
que o país não precisava ser campo de doença e morte. Havia conhecimento,
alternativa e gente capaz de nos desviar da tragédia. O governo de Jair Messias
Bolsonaro nos guiou para o abismo.
O estudo sobre mortes evitáveis, produzido por pesquisadores de UFRJ, Uerj e USP para as organizações sociais que formam o Alerta, mostrou que medidas de distanciamento social e controle — incluindo testagem e rastreamento nunca implementados — reduziriam em 40% o potencial de transmissão da doença. Mesmo sem vacina ou medicação específica, 120 mil brasileiros teriam sobrevivido ao primeiro ano da pandemia, houvesse uma adequada política de enfrentamento, informou Jurema.
Pedro Hallal lembrou que o Brasil abriga
2,7% da população global, mas até aqui contabilizou 12,9% dos óbitos por
Covid-19. Se acompanhássemos a média mundial de mortes pela doença, quatro de
cinco vítimas teriam se salvado. A demora na compra e aplicação de vacinas,
CoronaVac e Pfizer em particular, levou entre 95 mil e 145 mil brasileiros a
óbito, continuou. Março e abril de 2021 foram os meses mais letais da pandemia.
Hoje o país não chegou a 12% de adultos imunizados com duas doses e acomodou-se
num patamar superior a 2 mil mortes por dia.
Não há quem no Brasil tenha passado ileso
pela crise sanitária. Todo mundo integra ou conhece uma família enlutada pela
pandemia. Em 2020, só 49 municípios brasileiros tinham mais de 500 mil
habitantes, total de mortes que a Covid-19 alcançou no último sábado — e que só
mereceu lamento protocolar do presidente da República, dois dias depois. No
domingo, numa rede social, o deputado Osmar Terra, apontado pela CPI como líder
do grupo que orientou a política pública de imunidade coletiva por contágio, se
referiu à tragédia como “fragilidade diante das forças da natureza”. Não foi.
Os resultados nefastos da pandemia são
decorrentes de o governo “não cumprir as políticas de saúde”, resumiu a médica
e ativista Jurema. Numa sociedade desigual como a brasileira, doença e morte se
abateram mais gravemente sobre os grupos mais vulneráveis: negros, indígenas,
pessoas de baixa renda e escolaridade. Hallal revelou à CPI que um gráfico com
informações étnico-raciais foi censurado em apresentação no Palácio do Planalto
no ano passado: “(O slide) mostrou que as populações indígenas tinham cinco
vezes, em média, maior risco de contaminação do que as populações brancas. Que
as populações negras, sejam pretas ou pardas, tinham o dobro do risco de
infecção”.
Na quarta-feira, o IBGE tornou público um
conjunto de indicadores de moradia pré-pandemia. Quase quatro em dez domicílios
não tinham rede geral ou abastecimento regular de água quando a Covid-19
começou a se espalhar no Brasil; 9,8% da população vivia com seis ou mais
moradores na mesma residência; 8% dos pobres não tinham banheiro em casa. São
situações que dificultam, mas não impedem, o combate a um mal que depende de
mãos higienizadas, ambientes arejados e isolamento residencial.
No Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, o
programa Conexão Saúde — parceria entre Fiocruz, Redes da Maré e outras organizações
— conseguiu mapear casos, impor isolamento e quarentena e, assim, reduzir
óbitos por Covid-19. Em 15 semanas, o total de notificações da doença
(testagem) saltou 140% (de 1.150 para 2.764), e o de mortes caiu 61% (de 192
para 74). Pacientes e familiares receberam assistência médica e psicológica,
orientações sobre isolamento, kits de alimentação, higiene e limpeza para 14
dias de distanciamento.
São medidas que os níveis de governo,
desarticulados, não foram capazes de pôr de pé em quase um ano e meio de
pandemia. Mas ainda podem, porque a tragédia não chegou ao fim. Pedro Hallal
apelou aos senadores pela necessidade de o Brasil vacinar em média 1,5 milhão
de pessoas por dia e, para derrubar curvas de incidência e óbitos, impor três
semanas de rigoroso isolamento social. Jurema levou à CPI uma lista de
recomendações, incluindo a criação de um memorial pelas vidas perdidas; plano
de responsabilização e reparação às famílias e à sociedade; formação de uma
Frente Ampla de Enfrentamento à Covid-19; aplicação de medidas para reduzir a
transmissão; e investimentos no Sistema Único de Saúde. Há tempo. Tem de haver.
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