sexta-feira, 25 de junho de 2021

César Felício - A usina de Bolsonaro

Valor Econômico

Alimentar teorias conspiratórias é um método do presidente, sempre usado nos momentos de dificuldades

O momento culminante da retórica antivacina do presidente Jair Bolsonaro aconteceu em Porto Seguro, em 17 de dezembro do ano passado. Foi uma fala estranha, mais estranha do que costumam ser as referências estapafúrdias do presidente a problemas que afligem a humanidade. Comentava ele sobre as exigências que a Pfizer fazia para fechar o contrato de vacinação com o país. Entre elas, a de não se responsabilizar pelos efeitos colaterais do imunizante.

Disse o presidente: “Se você virar um chip, virar um jacaré, é problema de vocês, pô. Não vou falar outro bicho porque se não vão começar a falar besteira aí, né? Se você virar um super-homem, se nascer barba em alguma mulher, ou se algum homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso, e o que é pior, vão mexer no sistema imunológico das pessoas...” O vídeo está disponível no YouTube.

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O vacilo em se referir ao animal não foi casual. Ao que tudo indica, foi pensado, o presidente interrompe o nome do bicho ao meio, e, sem pausa, se refere ao jacaré. O presidente muito provavelmente queria induzir os ouvintes a pensar em chimpanzé, e propositalmente trocou por jacaré, “porque se não vão começar a falar besteira”.

O que Bolsonaro fez em dezembro, e poucos perceberam na hora, foi um “dog whistle”. De acordo com a definição corrente na Wikipedia, “dog whistle” é “uma mensagem política empregando linguagem em código que parece significar uma coisa para a população em geral, mas tem um significado mais específico e diferente para um subgrupo-alvo”. Bolsonaro passava um sinal.

Há toda uma corrente de desinformação na internet com matriz no exterior e reverberação aqui dentro que menciona a suposta produção de vacinas contra viroses com material genético de chimpanzés. O jacaré foi um disfarce tropical para camuflar o real comando.

Ao verbalizar seu suposto lapso, Bolsonaro estava ativando um circuito, criando uma senha identificadora para engajar grupelhos de lunáticos da internet. São esses grupelhos que dão a partida para mensagens que, ao fim e ao cabo, chegam ao WhatsApp do colega da firma ou da tia que recém descobriu as potencialidades das redes sociais. Há método na loucura.

A antropóloga Isabela Kalil, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, analisa “fake news” em cinco frentes: atua em grupo interdisciplinar sobre covid-19 na Faculdade de Medicina da USP, coordena dois núcleos de etnografia em sua faculdade de origem e participa de dois observatórios de estudos sobre a extrema-direita.

Ela publicou, na semana passada, em coautoria com outros pesquisadores, o ensaio “Politics of fear in Brazil: Far-right conspiracy theories on COVID-19”, na Universidade de Bristol, com uma análise exaustiva do discurso do presidente em todo o período da pandemia. Isabela conclui que a fala do jacaré, como outras, são fragmentos de um mesmo fluido de teorias conspiratórias globais que ganham customizações para serem usadas em um caso político concreto ou outro.

A fala do jacaré, ressalta Isabela, coloca Bolsonaro em diversas sintonias: em uma única frase, há laivos de misoginia, preconceito contra homossexuais, anti-intelectualismo e revolta contra a regulação pelo Estado de comportamentos individuais em nome de um interesse coletivo. Ser contra a vacina é ser antissistema, e o ódio contra a regulação do Estado explica muito do comportamento eleitoral em diversas partes do mundo. A frase do jacaré é uma nave-mãe.

“As teorias conspiratórias sempre nascem de estruturas narrativas já existentes”, diz a antropóloga. Gabinetes do ódio, portanto, fazem uma espécie de bricolagem. E os “dog whistle” disparam circuitos cooperativos.

Isabela diz que não há elementos para se afirmar que os Estados Unidos são a matriz desta usina de delírios. Mas os Estados Unidos estão no seu radar, dado o fato de ser historicamente um terreno fértil para teorias de conspiração. Para ficar no passado, houve o macartismo, as fabulações sobre o assassinato de Kennedy, os questionamentos sobre a veracidade da ida do homem à lua, as versões fantasiosas sobre a origem do HIV.

Os Estados Unidos também são o lar de grandes influenciadores digitais do bolsonarismo, a começar do mais ilustre deles, o polemista Olavo de Carvalho, conforme lembra Isabela. É a terra ainda de Steve Bannon, que colocou Eduardo Bolsonaro como comandante de um movimento de forças conservadoras na América Latina.

No processo da pandemia, Isabela detecta dois momentos de divulgação de “fake news”: o do início da pandemia e o do início da vacinação no Brasil, que foi apropriado por um adversário do presidente, o governador paulista João Doria.

A origem do vírus e do produtor do imunizante com o qual Doria estabeleceu a parceria liberou todas as variantes possíveis de teorias conspiratórias anti-China nas redes e fez com que a extrema-direita abrisse sua caixa de ferramentas. “O repertório é o mesmo, em diversas partes do mundo. É bastante previsível, é possível estabelecer um termômetro para identificar qual fato dispara que tipo de teoria de conspiração”, diz Isabela, mencionando uma linha de pesquisa que já está tocando.

É nesta demonologia que a nova ofensiva pelo voto impresso se encaixa. O voto impresso auditável, segundo Isabela, é mais uma teoria conspiratória que se apropria de uma narrativa já existente, com base em matriz no exterior. Sempre esteve presente, é um item do repertório bolsonarista que vive dando voltas, mas começou a aumentar suas rotações por minuto depois que um conjunto de fatores levou a extrema-direita a se preocupar seriamente com a possibilidade de perder as eleições de 2022.

Isabela lembra que a mensagem-base dos bolsonaristas é o clamor pelo voto impresso e auditável. Auditável por quem? A resposta óbvia seria pela Justiça Eleitoral. Mas no bestiário das redes sociais nada é óbvio. Agora que começam a surgir indícios de que pode ter havido corrupção na gestão do governo federal na pandemia, será interessante observar que coelho será tirado da cartola no mundo digital.

 

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