Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O que está em jogo em 2022 não é apenas quem ocupará o Planalto; é preciso prestar atenção às outras arenas do poder
O cargo de presidente da República é a
peça-chave do sistema político brasileiro. É por esta razão que no centro do
debate atual está a eleição presidencial de 2022. Porém, há outras arenas
políticas que serão decisivas para o futuro do país e da democracia brasileira
e não podem ser esquecidas. Uma análise multidimensional é fundamental para
escapar de uma visão simplista sobre a governabilidade no Brasil e perceber
como o bolsonarismo quer ir além da conquista do Palácio do Planalto. E só uma
estratégia política ampla poderá combater o avanço do populismo de extrema
direita.
Antes de analisar a multiplicidade de
arenas decisivas do sistema político brasileiro é preciso esmiuçar um pouco
mais a natureza do poder presidencial. Sua força tem três raízes. A primeira é
institucional, derivada dos poderes que a Constituição dá ao ocupante desse
posto. O presidente tem um grande poder de nomeação (algo em torno de 20 mil
cargos comissionados, além das indicações para os tribunais superiores), de
iniciar e influenciar os processos legislativos, de controlar
discricionariamente boa parte do fluxo de despesas. A caneta é forte, como
gosta de lembrar o próprio presidente Jair Bolsonaro.
O poder presidencial também se alimenta, em segundo lugar, da legitimidade popular majoritária. Ao início do mandato, há até uma lua de mel inicial com os outros atores do sistema político. Passado um período governamental, que varia segundo a capacidade política de cada presidente, os atores começam a olhar a popularidade presidencial como medidor de sua força política. No momento, por exemplo, Bolsonaro não tem suporte social suficiente para evitar uma CPI importante como a da covd-19, que já está arranhando sua imagem, mas tem por ora o percentual de apoio popular necessário para que o presidente da Câmara tema colocar a votação de impeachment na pauta.
O terceiro e último elemento do poder
presidencial é sua dimensão simbólica. Desde Vargas houve uma mudança não só
institucional na Presidência da República. Todas as falas do presidente são
tomadas como referência para a nação. Como Bolsonaro tem um apoio mínimo que
varia de 15% a 25%, é de se esperar que essa parcela da sociedade acredite no
que ele fale e o siga. É isso que tem acontecido na pandemia. Ao não usar
máscara e incentivar aglomerações, Bolsonaro conseguiu influenciar uma
quantidade suficiente de pessoas para inviabilizar o isolamento social, o que
já lhe imputa uma responsabilidade política direta pela morte de milhares de
brasileiros.
Só que o presidente não pode tudo no
sistema político brasileiro erigido pela redemocratização. A Constituição de
1988 lhe impõe limites legais e estabelece uma série de controles. Além disso,
a independência dos outros Poderes e uma estrutura federativa com Estados e
municípios autônomos geram uma governança mais complexa e democrática do país.
A conquista da democracia, ademais, não se esgota nas instituições estatais. Há
todo um conjunto de organizações da sociedade que são fundamentais para definir
os parâmetros das decisões políticas. Parafraseando a famosa frase de Rousseau,
no regime democrático o povo não é livre apenas no dia das eleições, pois ele
pode, a qualquer momento durante o mandato, manifestar-se e exigir mudanças das
políticas públicas.
Bolsonaro sonha em ter um poder imperial.
Por isso, seus elogios à ditadura militar e suas críticas a toda limitação
democrática de poder que lhe foi imposta durante seu governo. Quando fala do
“povo”, está falando de seus apoiadores mais fiéis - o restante é tratado como
minorias que devem obedecer à maioria. A maneira agressiva como trata a
imprensa revela bem o quanto o bolsonarismo preza a democracia.
Entre o sonho e a realidade, Bolsonaro
percebeu que precisa ter mais poder sobre quem lhe impõe limites democráticos.
Seu objetivo é controlar melhor, numa possível reeleição, o Congresso Nacional,
os órgãos de controle institucional, especialmente o STF, reduzir ao máximo o
número de governadorias independentes do governismo e diminuir a importância da
sociedade civil ou mesmo deslegitimá-la em suas formas de ação política. Essa
estratégia de atuação do bolsonarismo já foi iniciada, enquanto a heterogênea
oposição concentra muito sua discussão no pleito presidencial, brigando mais do
que atuando conjuntamente.
O que está em jogo em 2022 não é apenas
quem será o próximo presidente da República. É um ponto importante, obviamente,
mas há muito mais em disputa, porque a questão estratégica é sobre como o país
será conduzido e como isso afetará o desenvolvimento e a democracia brasileira.
Daí que é preciso prestar mais atenção nas outras arenas de poder, a começar da
eleição congressual.
Regularmente se diz no Brasil que só uma
coisa é certa após a eleição presidencial: todos os presidentes têm de governar
com o Centrão. Assim ocorreu desde Sarney e os governantes do PSDB e do PT não
escaparam dessa sina. Bolsonaro até disse na campanha que os membros do Centrão
eram ladrões, mas, quando temeu o impeachment, fez um acordo com eles e
entregou muito mais poder a esse grupo do que qualquer outro presidente já
fizera.
Mas a diferença entre os governos não está
apenas na quantidade de poder que repassaram ao Centrão. Há outra distinção
ainda mais importante: a capacidade de o Executivo conduzir essa aliança,
estabelecendo uma agenda modernizadora que é negociada com os setores
representantes do atraso. E vale aqui dizer que o projeto modernizador vai além
das chamadas reformas econômicas, pois presidentes como FHC e Lula tiveram um
reformismo voltado também ao combate da desigualdade social, à proteção
ambiental, à garantia dos direitos humanos e ao reforço das instituições
democráticas.
Para que dê certo qualquer projeto
modernizador é preciso ter uma parcela dos parlamentares com uma visão
modernizante e que dialogue com o Centrão da ocasião. O fato é que o
bolsonarismo vai procurar eleger pessoas com um perfil oposto ao que o país
necessita para se modernizar e defender a democracia. As oposições devem falar
disso ao longo da campanha e procurar mostrar à sociedade que é necessário
termos deputados e senadores capazes de evitar a continuidade do quadro atual,
em que há cada vez mais pobres negros mortos na periferia, destruição da
educação, desalento completo dos jovens sem emprego, florestas destruídas,
imagem internacional completamente negativa e a construção de um novo
condomínio de interesses patrimonialistas e autoritários para dominar o Estado
brasileiro.
Destaque especial deve ser dado aqui ao
Senado. Trata-se da casa legislativa que muitas vezes equilibra o jogo com o
Centrão. Um terço das cadeiras será renovado em 2022. Essa nova composição de
senadores poderá definir se teremos controle democrático sobre o próximo
presidente ou não.
O bolsonarismo também atua na arena do
funcionalismo público para implantar sua agenda. Carreiras civis estão sendo
enfraquecidas e a proposta de reforma administrativa que está em debate poderá
dar um poder ainda maior de nomeação ao presidente da República, favorecendo
uma politização patrimonialista que nenhum governante teve a seu dispor. Imagine
que um maior poder discricionário poderá multiplicar gestões desastrosas como a
da pandemia, em que amadores cuidaram da saúde pública. Desse modo, aqui está
uma arena fundamental para a modernização do país e é preciso criar remédios
ante os Weintraubs, os Salles, os Pazuellos e afins - com este tipo de gestor,
a decadência do Brasil é certa.
Uma das principais barreiras ao
autoritarismo está no Supremo Tribunal Federal. No próximo quadriênio, dois de
seus ministros se aposentarão. Se Bolsonaro for reeleito, escolherá então
quatro entre os onze membros do STF. Desse modo, essa trincheira ao arbítrio
continuará do lado da democracia. Mas para que isso seja garantido, as
oposições precisam ter uma visão mais estratégica e ao longo da campanha
mostrar a importância dessa Corte para o país. Os contrários ao bolsonarismo
que sejam petistas e antipetistas podem listar diversas decisões judiciais das
quais discordam, mas é bom lembrar que sem um Supremo forte ambos os grupos
podem perder, porque há o risco de quebra democrática.
As eleições a governador constituem outra
arena fundamental para evitar o retrocesso do país. Os governos estaduais foram
o principal contrapeso à postura negacionista do presidente Bolsonaro,
responsável pelo altíssimo número de mortes no Brasil. Se o governador João
Doria não tivesse atuado pela vacina, o governo federal não teria se mexido. No
fundo, o federalismo não só evitou os desmandos autoritários da Presidência,
como teve de lidar com a negligência da União em políticas públicas como saúde
e educação.
A discussão sobre 2022 não pode esquecer
que as eleições são fundamentais, mas que a manutenção de uma sociedade civil
autônoma, forte e atuante é a maior fiadora da democracia. Os que se opõem ao
bolsonarismo deveriam combinar o seguinte: os partidos podem ter seus
candidatos próprios à Presidência, ao mesmo tempo que deveriam todos se juntar
até o período eleitoral em torno de grandes manifestações de massa contra
Bolsonaro. Sem isso, o risco é que no final se perca aquilo que garante a
divergência dentro da sociedade e da oposição: a democracia.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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