segunda-feira, 5 de julho de 2021

Miguel de Almeida - Não matarás, não roubarás

O Globo

A opção pela burrice e atraso, no Brasil, é escolha ideológica. Não é acaso ou acidente. Como justificativa, esconde-se atrás de preconceitos religiosos (sempre o cristianismo de oportunidade), da invenção de inimigos imaginários (ah, os comunistas) e de um astucioso patriotismo (de resultados).

Num registro mais amedrontador, uma vaga ameaça à família dó-ré-mi também é usada como pretexto. Cazuza, o grande poeta brasileiro da minha geração, ainda nos anos 1980, alertava os suspeitos de sempre: suas ideias não correspondem aos fatos. Certamente, Bia Kicis está informada de quantas famílias o Bozo montou nas últimas décadas.

Atrás de um patriota de galocha e de um tiozão da moto, sempre se esconde um miliciano digital.

Desculpe, eu sei, é uma análise sofisticada para flagrar gente tosca. Mas, entre uma motociata e uma comunhão sem confissão, os bons cérebros escapam do Brasil, aos borbotões, em reação à dilapidação empreendida pelos bozofrênicos.

Além dos mais de 520 mil mortos, o Brasil enfrenta a tragédia de uma diáspora de pessoas bem preparadas e um massacre estruturado à educação. Se antes eram solteiros com ensino superior a deixar o país, agora são mestres, doutores, casais e até famílias inteiras. Em relação a 2013, apenas em 2019, mais que o dobro (alta de 125%) de pessoas resolveu pular fora definitivamente do barco brasileiro. O número é bem maior se pensarmos na quantidade daqueles que tentaram entrar ilegalmente somente nos Estados Unidos.

Pelo jeito, só nos sobrarão o capacho do Lira, o murista do Pacheco e as falsas orações (com trilha sonora) da Zambelli. Ah, também os negócios imobiliários do Flávio Bolsonaro.

Não é só na desesperança do presente que opera a ação maléfica do bozonazismo. Na educação ocorre o desmonte do futuro. Discutem-se ideias bozofrênicas como a escola sem partido, o homeschooling e o conteúdo das questões do Enem.

Imagino o Malafaia e o Bozo, secundados pelo André Mendonça e pelo Milton Ribeiro, criando as perguntas das próximas provas.

— Ô Malafa, precisamos de uma pergunta sobre a Idade Média —diz o Bozo.

O sempre serviçal do André Mendonça se antecipa e oferece:

— Que tal “quais foram as últimas palavras de Cristo?”

O lobista evangélico Milton Ribeiro corre com sua sugestão sobre a Idade Média:

— Em qual ano o catolicismo se tornou religião oficial em Roma?

— Mas não são questões ao tempo da Idade Média? —pergunta o garçom que serve o café.

— Deixe de ser ímpio, moleque —ralha Malafa. —Cristo não tem idade.

— Deus seja louvado — grunhe o Bozo.

Como se percebe, nossos problemas acabaram. O homeschooling, outra obsessão tamanha, como o voto impresso e o amor hétero, paira como ameaça às melhores práticas educacionais. Basta imaginar como o ogro da Fundação Palmares distribuiria seu conhecimento em seu sacrossanto ambiente doméstico.

— Pai, Jesus era comunista?

— Tá louco, moleque?

— Então, por que ele dizia que somos todos iguais?

— Sei lá.

—Ele também disse para dividirmos nosso pão…

— Bem, isso é bem complexo para a sua idade —disfarça o ogro.

— Pai, o tio Malafaia é comunista?

— Nada disso, ele é cristão.

— E Cristo não era comunista?

— Por hoje chega, todos para a cama —vocifera o educador bozonarista.

Parece brincadeira, ilação religiosa, mas é sério. Porque é estratégia. Cazuza refletiu à sua maneira e com licença poética: “Transformam um país inteiro num puteiro/Pois assim se ganha mais dinheiro”. Ele já prenunciava o manjaléu da Fundação Palmares.

Em prova viva do axioma posto por Pedro Malan (no Brasil, até o passado é incerto), o cuca da Fundação Palmares denunciou a doação de títulos de autores supostamente comunistas, pedófilos e perigosos à família. E anunciou títulos de alguns autores negros. Uau. Entre eles, Luís Gama, Cruz e Souza e Carolina de Jesus.

De novo, mostrou que estava brincando de amarelinha ou tira a meleca no dia em que o professor deu a aula sobre o movimento abolicionista. Para ter ideia, estivesse vivo, Luís Gama consideraria Freixo um tipo de direita. E o que achar do simbolista Cruz e Sousa, autor de “O emparedado”: “…acordando chamas mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres… pela condenação do Pensamento, dentro de um báratro monstruoso de leis e preceitos obsoletos… Tu és dos de Cam, mal dito, réprobo, anatematizado!… Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações”.

— Pai, o que é báratro?

 

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