Valor Econômico / Eu & Fim Semana
O presidente é um caso cansativo de
obstinação na suposição equivocada de que o povo renunciou ao seu direito de
eleitor cidadão na definição de quem o governa e de como deve governá-lo
Em dias passados, o ministro Luís Roberto
Barroso, do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior
Eleitoral, dirigiu-se ao povo brasileiro, com seu proverbial civismo e suas
proverbiais serenidade, lucidez e erudição, para uma lição pública sobre o que
é democracia, o que é democracia num país como o Brasil, o que é progresso
eleitoral e o que é atraso eleitoral e político.
Mostrou-nos a importância do voto e da
segurança do voto na confirmação e na renovação da democracia de que tanto
carecemos. Contra a tese autoritária dos defensores de mecanismos retrógrados
de expressão eleitoral. O que, em tempos passados, foram poderoso instrumento
de manipulação do voto, de usurpação da vontade do brasileiro menos eleitor e
menos cidadão. Os mecanismos de redução do poder a uma renúncia forçada de
vontade política expressa no voto, mediante fraude.
O ministro Luís Roberto Barroso defendeu e
justificou o protagonismo político do cidadão e do povo como fundamento da
ordem democrática, um bem cívico que deve ser assegurado e protegido. Ensinou -
e bem.
Apoiado por seus pares, deu ao seu pronunciamento a beleza cívica de um ato de esperança de que o país tanto carece. O discurso do ministro libertou o ouvido dos brasileiros do discurso de botequim, das improvisações ignorantes dos que têm se revelado incapazes de assumirem-se como cidadãos. Os que, nesse sentido, assumem-se como usurpadores do poder que não é seu.
Esse discurso passará para a história da
República como um dos grandes e memoráveis pronunciamentos de nossa vida
política, não só porque dito num momento de notória e confessa conspiração
contra a democracia, mas também porque ele contém por inteiro o espírito de uma
nação tímida, criada nos resquícios da escravidão e de seus silêncios de
consciência. Uma nação ameaçada e tratada como inimiga por aqueles que deveriam
estar a seu serviço e defendê-la, os que tratam o povo como suspeito.
É nele central esta afirmação: “Escolhi
para minha vida ser um agente do processo civilizatório e empurrar a história
na direção certa”. São palavras de grandeza e consciência cidadã do dever que
nos dizem tudo em relação aos nossos impasses e a nossas esperanças.
O discurso do ministro Luís Roberto Barroso
teve um fecho de ouro no enfático e altivo discurso do presidente do STF, Luiz
Fux, em nome da Corte porque discurso institucional.
Desde o dia de sua posse, o presidente da
República chega ao governo como portador de uma guerra contra um inimigo
imaginário, que só existe na mente de um prisioneiro do passado, um passado de
iniquidades políticas e sociais contra os desvalidos, contra inimigos
inventados para sacrificá-los e fortalecer a repressão como forma postiça do
heroísmo na falta de heróis. Bravatas, xingamentos e prepotência não fazem
senão caricaturas de heróis.
Ele tem revelado enorme dificuldade para
compreender que, na democracia, a estrutura de poder é relacional. São três os
poderes, cada qual com sua função específica. Eles não só se completam, mas se
determinam reciprocamente.
Nesse sentido, ao atacar pessoas íntegras e
instituições fundamentais, ele se revela, diz o que é e diz que não é expressão
legítima dessa estrutura relacional. Como acontece com todos na estrutura de
poder, ele é criatura da reciprocidade das instituições. Ao negá-las, ele se
nega ao negar a função que ocupa, no que é de fato a renúncia tácita ao mandato
que recebeu, proclamado pelo Poder Judiciário e empossado pelo Poder
Legislativo. Sem esses poderes ele seria apenas presidente de coisa nenhuma.
O despreparo para a democracia de um
governante de consciência limitada e equivocadamente militarizada, que trata o
Brasil como um quartel e como se fosse ele um instrutor de ordem unida, põe o
país em perigo ao desconhecer a letra e o espírito da Constituição que o
preside e que nos preside. A Carta que põe cada um em seu lugar na organização
política da nação.
Não obstante, o governante tem estimulado o
surgimento e o funcionamento de uma ordem política paralela, de silêncios e
coadjuvâncias cúmplices e subalternas. De gente que lhe bate continência até
nas impropriedades de um autoritarismo de poder absoluto, descabido e ameaçador
à ordem propriamente democrática.
Essas manifestações de despreparo cívico
são formas estruturais e crônicas de ignorância política. O atual presidente é
um caso cansativo de obstinação na suposição equivocada de que o povo
brasileiro renunciou ao seu direito de eleitor cidadão na definição de quem o
governa e de como deve governá-lo. O povo, e não o eleito, é a fonte da
legitimidade política. O povo é a instituição que fica. Bolsonaro é temporário
e descartável.
José de Souza Martins é
sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da
Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall
(1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras.
Entre outros livros, é autor de “No Limiar da Noite” (Ateliê, 2021).
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