O Globo
No governo Jair Bolsonaro, aporofobia não é
surpresa, mas pré-requisito. Ministro da Economia, Paulo Guedes já depreciou
empregadas domésticas, filhos de porteiro, brasileiros em situação de fome. A
mais recente demonstração de horror a pobres partiu do titular da Educação,
Milton Ribeiro, há um ano no cargo. Numa entrevista à TV Brasil, o pastor
presbiteriano, autodeclarado professor, disparou um trio de declarações de
ruborizar Justo Veríssimo, o personagem de Chico Anysio que melhor encarnou o
desprezo dos homens públicos pelos brasileiros de baixa renda. Combinou
indiferença, preconceito e desinformação, a santíssima trindade do
constrangimento. Merece resposta.
1) “Na Alemanha são poucos os que fazem universidade, universidade na verdade deveria ser para poucos nesse sentido de ser útil à sociedade.” O ministro parece desconhecer que, no Brasil, universidade já é para poucos. Em 2019, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, apenas um em cada quatro jovens de 18 a 24 anos, idade desejável, frequentava o ensino superior. Comparado aos membros da OCDE, clube que o governo de Milton Ribeiro sonha adentrar, o Brasil tem menos habitantes que concluíram a universidade. Em Portugal, Turquia e Colômbia, a proporção de adultos de 25 a 34 anos com carreira universitária supera a do Brasil.
2) “Com todo o respeito que tenho aos
motoristas, é uma profissão muito digna, mas tem muito engenheiro, muito
advogado dirigindo Uber porque não consegue colocação devida. Mas se ele fosse
um técnico em informática estaria empregado, porque há uma demanda muito
grande.” O Brasil tem 34,7 milhões em vagas informais, precárias, sem direitos
trabalhistas e previdenciários; 14,8 milhões de desempregados, gente que não
trabalhou e busca ocupação; 5,7 milhões de pessoas que desistiram de procurar,
os desalentados. Se há engenheiros e advogados em funções aquém da formação que
tiveram, cabe ao ministro da Educação identificar os problemas e atuar pela
qualidade dos cursos universitários. Ou cobrar do titular da Economia medidas de
estímulo à criação de emprego e renda. Mas ainda nesta semana, o governo
aprovou na Câmara dos Deputados um projeto de reforma trabalhista que legaliza
a precarização. Cria para jovens de 18 a 29 anos uma modalidade de contratação
por meio salário mínimo e vale-transporte, mas sem férias, décimo terceiro e
FGTS. É a legalização do trabalho precário. Se não pode superá-lo, formalize-o.
3) “O que também eu acho justo (metade das
vagas nas universidades públicas para alunos de maior renda), considerando que os
pais desses meninos tidos como filhinhos de papai são aqueles que pagam os
impostos no Brasil que sustentam bem ou mal a universidade pública.” Aqui, há
ignorância ou má-fé para induzir a sociedade a acreditar que os pobres
brasileiros não pagam impostos, quando inúmeros e insuspeitos estudos provam
que a carga tributária por aqui é regressiva — quanto mais se ganha, menos se
paga. Levantamento recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
mostra que a tributação indireta abocanha 26,7% da renda dos 10% mais pobres do
país e somente 10,1% do décimo mais rico, o topo da pirâmide social. A
assimetria se explica, porque o Brasil taxa pesadamente produtos e serviços e
alivia renda e patrimônio.
A Lei de Cotas, que ano que vem completa
uma década e será reavaliada, promoveu inédito acesso de jovens negros e
indígenas, de baixa renda e oriundos de escolas públicas à universidade. Pôs
fim à reserva quase total de vagas àqueles que o próprio ministro reconhece
como filhinhos de papai. Nas avaliações, alunos cotistas têm mostrado
desempenho semelhante aos demais — não raro, melhor —, além de bem-vindo
aumento da diversidade na convivência e na produção acadêmica.
Em vez de advogar pelo acesso a quem já é
privilegiado, Milton Ribeiro poderia se ocupar do desânimo que, no
pós-pandemia, tem levado milhares de jovens a desistir do Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem). O total de inscritos para a prova deste ano foi o menor
desde 2009, quando foi inaugurado o atual modelo de avaliação. Pesquisa do
Conselho Nacional da Juventude, entre março e abril passados, com 68 mil
brasileiros de 15 a 29 anos, revelou que oito em dez não fizeram o Enem 2020;
43% pensaram em abandonar os estudos durante a pandemia, principalmente por
falta de dinheiro e dificuldades com o ensino remoto; 6% já largaram a escola.
A indiferença oficial certamente atrapalha.
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