Folha de S. Paulo
Ao acusar CPI de afastar as vacinas, líder
do governo na Câmara se torna o símbolo de um notável momento de delinquência
política e intelectual
Ricardo
Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara, é um exemplo bastante eloquente
—até porque muito bem-sucedido na sua profissão— da pistolagem intelectual e
política que chegou ao poder em 2019. Ele não fazia parte do grupo original, é
verdade. Estava como aqueles crocodilos do Nilo que ficam nas águas rasas do
rio Mara, no Quênia, à espera da passagem dos gnus. Em algum momento, a manada
serviria de repasto. E lá estavam ele e outros de sua espécie com a bocarra
pronta.
A afirmação que tal senhor fez em depoimento à CPI —segundo ele, a comissão afastou do Brasil empresas dispostas a vender vacinas ao país— é mais do que uma provocação barata. Trata-se de uma mentira filo-homicida. E não tenham dúvida de que ele apelará ao que entende ser “liberdade de expressão” para mentir ainda mais e para tripudiar sobre quase 600 mil cadáveres. “Oh liberdade de expressão! Quantos crimes se cometem em teu nome!”
Atenho-me um tantinho a esse particular. É
a moda do momento. Essa mesma escória passou a defender com entusiasmo, por exemplo,
o fim
da Lei de Segurança Nacional —enterrada, sim, pelo Congresso, mas não
como pretendiam os falsos arautos da liberdade. Em seu lugar, veio a correta
Lei de Defesa do Estado Democrático. Eles não queriam nada. Apostavam no vazio
legal. Bolsonaro promete atendê-los por meio dos vetos, que têm de ser
derrubados.
Afinal, em seu país paralelo, em seu mundo
paralelo, em sua realidade paralela, cada um prega o que lhe dá na telha —muito
especialmente a destruição das garantias democráticas—, e as pessoas que se
virem com, literalmente, as armas que têm. E quem não as tem? Ah, é nesse ponto
que está a graça do jogo. As desigualdades, inclusive as ditadas por escolhas
políticas e ideológicas, devem ser naturalizadas. Um dos papéis dos gnus é
alimentar os crocodilos. A grandeza está na destruição. É ela que traz o
progresso. “A guerra é a higiene do mundo”. Ou teremos um país de maricas, de
fracos, de efeminados.
E quem não compartilha de seus mesmos
preconceitos estaria a exercitar um exclusivismo moral hipócrita, insincero. Só
se pode ser autêntico compartilhando de seus achismos. Caramba! Que graça tem a
liberdade de expressão sem poder humilhar os que já são fracos? Não sou dono do
pensamento liberal e, portanto, não serei eu a indicar os usurpadores. Mas os
justificadores da razia em curso poderiam ao menos nos fornecer a bibliografia
do pensamento liberal na qual buscam se escorar para justificar os crimes em
curso na saúde, no meio ambiente, na educação, na segurança pública...
É esse ambiente de vale-tudo que leva um
patriota com a biografia —muito especialmente a imobiliária— de Barros a ousar
meter o dedo no nariz da CPI, acusando-a daquilo que fez o governo que ele
representa na Câmara: uma gestão negacionista e homicida, que ousou combater a
Covid-19 com incentivo a
aglomerações, repúdio a máscaras, hidroxicloroquina, ivermectina, Precisa,
Davati, Dominghettis, Mayras, Helcios com h, Elcios sem h e outros coronéis e
aberrações. E, ora vejam!, se não tomamos cuidado, lá estamos nós a debater
“pluralidade e diversidade” com prosélitos de uma escória abertamente golpista.
O charlatanismo no Brasil não se limita
àqueles que defenderam tratamento precoce e remédios comprovadamente ineficazes
contra a Covid-19. Há também os charlatões do pensamento. Encerro com outro
assunto, não menos relevante.
Que o presidente
do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), tenha a coragem e o bom senso de
mandar para a gaveta os desatinos que estão saindo da Câmara sob o título de
reforma eleitoral, seja a PEC esquizofrênica relatada por Renata Abreu
(Podemos-SP), seja o projeto de lei sob os cuidados de Margarete Coelho
(PP-PI), com seus 972 artigos que ninguém conhece, o que corresponde a quase
três Constituições, incluindo as disposições transitórias.
Arthur
Lira (PP-AL) resolveu, ele também, brincar de “o Bolsonero” da Câmara.
O imperador do trocadilho nem estava em Roma quando houve o incêndio. Mas
consta que obrigava os presentes a ouvir a sua lira delirante. Os senadores não
são seus súditos.
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