O Globo
No dia em que o presidente Jair Bolsonaro
promoveu uma das cenas mais ridículas da História do Brasil pelo menos desde a
redemocratização, com um anacrônico e acabrunhado desfile de sucatas militares
sobre o Eixo Monumental, em Brasília, o Congresso lhe deu duas respostas de que
não aceitará mais essas manobras antidemocráticas. Serão suficientes essas
respostas? E elas são da mesma dimensão e igualmente inequívocas? Não creio nem
em uma coisa nem na outra.
As reações das duas Casas do Congresso ao
ensaio vergonhoso promovido pelas Forças Armadas nesta terça-feira, numa
demonstração de vassalagem inaceitável a um presidente com pendores golpistas,
foram desiguais.
No Senado, o presidente Rodrigo Pacheco
condenou de forma clara o ridículo desfile de tanques e blindados na Esplanada
dos Ministérios, uma demonstração tanto do anacronismo do gesto quanto dos
equipamentos.
Disse que a Casa não aceitará tentativas de
intimidação e soltou um “Viva a democracia”, evocando propositalmente Ulysses
Guimarães num momento em que cresce a articulação pela sua candidatura à
Presidência.
Não ficou só nas (necessárias) palavras. Com um forte simbolismo, os senadores aprovaram o projeto de lei que revoga a Lei de Segurança Nacional e estabelece crimes contra o estado democrático de direito no Código Penal, uma forma de garantir que os atuais arreganhos autoritários possam ser punidos sem que se precise recorrer a um entulho da ditadura, num momento em que várias dessas sucatas são retiradas dos porões, na forma de blindados ou de ideias.
Também vieram de senadores da CPI da
Pandemia algumas das mais veementes falas de repúdio ao inaceitável gesto de
provocação ao Parlamento. Isso um dia depois de o relator, Renan Calheiros
(MDB-AL), dizer em rede aberta de TV que já há elementos para indiciar
Bolsonaro por crimes comuns e de responsabilidade no trato da pandemia, além de
encaminhar as conclusões da investigação ao Tribunal Penal Internacional, em
Haia.
Os problemas do presidente na Casa não
terminam aí. Cresce, na mesma medida da sanha iliberal do presidente, a
disposição de segurar ou derrubar a indicação de André Mendonça ao Supremo.
Dizem os senadores: se todos os dias o presidente conspira contra o Judiciário,
como mandar para a mais alta Corte de Justiça alguém designado por ele,
emissário de seus propósitos?
E do outro lado do prédio de Oscar
Niemeyer, na Casa de cúpula convexa, idealizada desta maneira, aberta para
fora, justamente porque deveria representar o povo brasileiro?
Ali Arthur Lira equilibra os pratos,
tentando uma contemporização impossível entre a democracia e os interesses do
grupo que lidera, o Centrão, e do protoditador a que presta reverência.
Composição impossível, essa.
Quando a Câmara já se encaminhava para a
votação da PEC do retrocesso no voto eletrônico, Lira evitava criticar
abertamente a micareta dos tanques. Em off, a jornalistas, assegurava a derrota
da medida, ao mesmo tempo que comiam soltas, nos corredores e no WhatsApp, tentativas
de cooptação de deputados por igrejas evangélicas a favor da medida.
A PEC foi, finalmente, rejeitada. Mas as
sucessivas colheres de chá de Lira levaram a que o placar não fosse tão
elástico quanto se esperava em rejeição à ideia bisonha de que voto em papel
seja mais seguro que voto eletrônico. Essa é a chave para que Bolsonaro tenha
um pretexto para manter sua escalada retórica contra a democracia. Já que
ninguém, nem Lira, acredita que ele vai se moderar.
Eis por que a conduta de Lira não condiz com
o momento que põe em xeque a normalidade institucional do país: sua
condescendência calculada com Bolsonaro, que mira no poder dado a ele de
controlar lautas fatias do Orçamento federal, lhe dá tempo e desculpas para
prosseguir em seu projeto de tentar solapar o processo eleitoral. É sutil, mas
ao mesmo tempo é escancarado.
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