quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Paulo Sternick* - Paradoxos suspeitos

O Globo

Atordoar e intimidar o inimigo é uma das táticas necessárias à guerra. A linguagem militar já nos atravessa, e a lógica rasteira da caserna avança sobre a cultura. Mas, na política, ver adversário como inimigo é um inquietante sinal. E a confusão produzida por Bolsonaro parece proposital: visa a não identificar sua estratégia —ou a falta dela. Nem é possível distingui-la de um caráter perturbado. Talvez nem ele saiba exatamente como agir para alcançar o desejo de um poder absoluto e vazio.

O ultraje sofrido pela maioria dos brasileiros com essa trama macabra justifica a criação de um novo mote: “Bolsonaro nunca mais”. O sono da democracia produziu um monstro. É preciso acordar do pesadelo e começar a pensar em 2023, na reconstrução do nosso orgulho abatido, na renovação da esperança e da alegria, na crença real num futuro suave. É preciso dar emprego e melhorar a renda. Reabilitar o Estado e dar-lhe condições de voltar a investir.

Precisamos não falar de Bolsonaro. Nunca mais, porém, ele ainda nos enlaça em contradições. Se baixarmos a guarda, ficamos expostos às suas falácias e tramas diabólicas. Indefesos diante de seu caráter ardiloso e do gabinete do ódio. Ingênuos ante ensandecidos generais palacianos —sem falar do enigma sobre o que realmente pensam e planejam as Forças Armadas.

Na boa: o que significa quando o bondoso capitão chega ao extremo de precisar dizer que não dará um golpe? Que ele enuncia uma freudiana denegação? Um compromisso real — ou mais uma trapaça? Ele não é para amadores: o paranoico nos converte a todos em paranoicos.

O “tempero do extremismo” foi identificado pelo professor João Castro da Rocha como condição para Bolsonaro manter as tolas massas digitais em mobilização permanente. Mas o paradoxo disso é que a heroica resistência brasileira, ao repudiar o fanatismo medíocre da extrema direita, escancarou o projeto golpista: há incoerência e incompetência em o capitão privilegiar um séquito cada vez menor, em vez de ampliar seu apoio visando às eleições. Ministros do Supremo deram um basta. Ao que parece, comandantes militares vetaram o golpe e exigiram que o impulsivo Bolsonaro negasse o apoio deles. Meia-volta, ainda vou ver.

Nesse contexto, onde se situa o ministro da Economia neoliberal? Sabe-se que esta política econômica — de verdade, bem ultrapassada — se ancora no investimento privado, na arrumação das contas públicas para incentivá-lo e na diminuição do Estado. Mas Bolsonaro, de novo, não consegue coerência: com estilo delinquente, assusta investidores nacionais e estrangeiros — aumentando a desconfiança causada por sua gestão da pandemia e da defesa ambiental.

Com isso, o Estado falido não investe e ainda atrapalha! Assim, Bolsonaro, paradoxalmente, joga ativamente contra si e a política de seu ministro. Não sabemos como e por que Paulo Guedes ainda se mantém no cargo, manchando a biografia. A suspeita procede: pode haver método, desígnio e beneficiários nas linhas subterrâneas dessa loucura devastadora.

*Psicanalista

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