quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A dilapidação do Orçamento

O Estado de S. Paulo

Enquanto o Legislativo não cria regras de transparência para as emendas de relator, é urgente que órgãos de controle se debrucem sobre essas destinações

A Câmara dos Deputados organizou, no dia 23 de setembro, um debate com especialistas em gestão e direito público sobre os Impactos das Emendas de Relator no Orçamento Federal. Sintomaticamente, o debate foi promovido não pela Comissão do Orçamento, mas pela Frente Ética Contra a Corrupção. “Eu vejo uma corrupção sistêmica orquestrada por dois Poderes para fraudar o Orçamento público”, denunciou o professor de Direito Financeiro Heleno Taveira Torres. “É uma espécie de mensalão por dentro. A diferença é de meios: o que antes era feito com recursos estranhos ao Orçamento agora está sendo feito por dentro do Orçamento. O resultado é o mesmo: a compra de apoio de base parlamentar.”

Como apontou o diretor da Instituição Fiscal Independente, Felipe Salto, “o Orçamento público deveria ser o ápice do processo democrático, porque se trata de discutir a melhor alocação de recursos”. Com vistas à colaboração entre os Poderes eleitos para esse processo, a Constituição previu a possibilidade de emendas parlamentares na proposta orçamentária anual encaminhada pelo Executivo ao Congresso. Por meio delas, os parlamentares e suas bancadas poderiam orientar os recursos às necessidades da população.

Nos últimos anos, contudo, esse propósito tem sido desvirtuado, e as emendas se tornaram moeda de troca do Executivo para a cooptação de bases parlamentares artificiais. Desde 2015, as emendas passaram a ser obrigatórias e sua cota no Orçamento aumentou – chegando a 15% das despesas não obrigatórias da União e 51% de seus investimentos –, enquanto os critérios de alocação e mecanismos de transparência eram desmontados.

Além das emendas individuais e das bancadas estaduais, a legislação previu emendas que poderiam ser apresentadas pelo relator-geral do Orçamento para realizar ajustes técnicos. Mas, desde 2019, a cota do relator foi anabolizada, e hoje, dos R$ 34 bilhões reservados às emendas, metade é do relator. Como a legislação não previu critérios técnicos de vinculação desses recursos, como no caso das emendas individuais e de bancada, cria-se na prática um orçamento paralelo sob a égide do Executivo e em poder do relator.

Como apontou Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas, esse modo de utilização das emendas é inconstitucional, por ferir os princípios da impessoalidade, moralidade e publicidade, e distorce as políticas públicas, por servir a interesses paroquiais dos parlamentares antes que ao interesse público.

Em maio, o Estado revelou que pelo menos R$ 3 bilhões das emendas de relator foram distribuídos sem qualquer procedimento de monitoramento ou critério de alocação, em projetos de diversos Ministérios selecionados por congressistas da base aliada.

Para dar uma ideia da arbitrariedade dessas alocações, o município cearense de Tauá, sob o comando da mãe do relator-geral do Orçamento de 2019, Domingos Neto (PSD-CE), foi brindado em 2020 com R$ 146 milhões, uma média de R$ 2,4 mil por habitante, enquanto o valor per capita para a capital, Fortaleza, foi de R$ 77,8. Só em dezembro de 2020 e só no Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) foi contemplado com R$ 277 milhões – 17 vezes mais que a média das emendas individuais de cada parlamentar. O ministro Rogério Marinho, por sua vez, destinou R$ 1,4 milhão à obra de um mirante turístico a 300 metros de um terreno de sua propriedade. Segundo a Controladoria-Geral da União, em pelo menos 115 convênios do MDR o risco de sobrepreço foi considerado alto ou extremo.

“Tudo projeta para 2022 uma trajetória ainda mais dramática de propensão a manejar a máquina pública para atender no curto prazo eleitoral os governantes e quem se aproxima mais do Executivo”, disse a procuradora de Contas Élida Graziane.

Enquanto o Legislativo não cria regras de transparência e critérios de alocação para as emendas de relator, é urgente que os órgãos de controle se debrucem sobre essas destinações e que o Supremo Tribunal Federal avalie a compatibilidade dessas emendas com a Constituição. 

A ameaça dos juros

O Estado de S. Paulo

Para frear a inflação, o BC promete novos e fortes apertos na política de crédito

Dinheiro curto, crédito caro e empenho total no combate à inflação, sem preocupação com o crescimento econômico, são promessas do Banco Central (BC) para os próximos meses, talvez para a maior parte de 2022. Pressionados por todos os lados – pelas cotações internacionais, pela seca, pelos problemas de suprimento, pelo dólar e pela irresponsabilidade do presidente da República –, os preços ao consumidor subiram 10% nos 12 meses até setembro, sem dar, até agora, sinal de arrefecimento. O recado é claro: o Comitê de Política Monetária (Copom) vai concentrar-se em sua missão principal, a defesa do poder de compra da moeda, pondo de lado, por algum tempo, o cuidado com o estímulo à atividade.

O recado essencial pode ser o mesmo, mas o tom da mensagem ficou mais dramático. Ao anunciar, na semana passada, o aumento dos juros básicos para 6,25%, o comitê indicou, como rumo, um avanço no “território contracionista”. Postada seis dias depois, na última terça-feira, a ata da reunião veio com acréscimo de um advérbio quase ameaçador. A ideia, segundo a ata, é levar o ajuste a um patamar “significativamente contracionista”, para conduzir a inflação às metas de 2022 e de 2023.

Pela última estimativa do mercado, os preços ao consumidor subirão 8,45% neste ano, passando longe da meta de 3,75%. A meta oficial para o próximo ano é de 3,5%, mas a alta de preços, pelas últimas previsões, deve superar 4%. As estimativas do BC também apontam inflação acima dos objetivos fixados pelas autoridades. Para 2023 o centro do alvo é de 3,25%.

Já há quem aposte em juros básicos de 9% em fevereiro. O número surgiu, nas avaliações do mercado, logo depois de conhecida a ata. Até o começo da semana, as projeções do mercado indicavam juros de 8,25% no fim de 2021 e de 8,5% no encerramento de 2023. Qualquer dessas estimativas aponta condições de crédito muito desfavoráveis. As condições já são ruins. Em agosto o total do crédito concedido foi 2% menor que em julho, refletindo principalmente a redução de 3,4% nos financiamentos a pessoas jurídicas.

Com o aperto da política monetária, os juros dos empréstimos negociados livremente, isto é, sem limitações legais, chegaram a 29,9%, superando amplamente a média, já muito alta, de 25,5% registrada em dezembro de 2020. Os novos dados do crédito foram divulgados na última segunda-feira pelo BC. Entre o fim do ano passado e agosto deste ano, os juros para o segmento corporativo subiram de 11,6% ao ano para 16,2%. O custo dos empréstimos às famílias passou de 37,2% para 40,9%, limitando severamente a expansão do consumo e agravando as condições dos consumidores já endividados.

Na contramão das avaliações do mercado, o Copom mantém tom otimista ao citar a recuperação econômica já observada e as perspectivas. O balanço do segundo trimestre e os últimos indicadores, segundo a ata, mostram evolução positiva, sem afetar o “cenário prospectivo” de “recuperação robusta” no segundo semestre. Parece um cenário estranho, quando se consideram os dados já conhecidos e as projeções divulgadas a cada semana.

O Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre foi 0,1% menor que o do primeiro. Atualmente, a indústria de transformação, importante fonte de empregos formais, segue emperrada, embora o consumo tenha crescido em julho. Mesmo com alguma melhora no terceiro trimestre, o mercado de emprego deve ter continuado muito ruim – bem pior, certamente, que na maior parte dos países emergentes e avançados.

Além disso, as projeções de atividade têm piorado. O crescimento do PIB estimado para este ano caiu em poucas semanas de 5,3% para 5,04%, segundo a pesquisa Focus. Em um mês a expansão estimada para 2022 passou de 2% para 1,57%. Se o aperto monetário continuar e avançar em território “significativamente contracionista”, como antecipa o Copom, até o mísero avanço econômico estimado para 2022 poderá ser impossibilitado. Seguir nesse rumo será um teste de sangue-frio para os membros do Copom – e de resistência para os consumidores e empresários.

O centro se sustenta

O Estado de S. Paulo

O eleitor alemão manifestou seu desejo por estabilidade, mas também por renovação

As eleições na Alemanha foram inconclusivas como nunca e equilibradas como sempre. Na corrida eleitoral, a liderança oscilou entre o bloco de centro-direita da democracia cristã (CDU-CSU), a centro-esquerda social-democrata (SPD) e os Verdes. Ao fim, revertendo anos de declínio, o SPD terminou à frente, e terá a chance de formar um governo, em princípio aliando-se aos Verdes e liberais. Mas as incongruências entre esses partidos e a margem estreita sobre a democracia cristã da chanceler Angela Merkel (25,7% contra 24,1%) não permitem descartar que o CDU seja chamado a negociar ou mesmo que consiga virar o jogo e compor uma maioria. A definição pode tomar meses.

Essa perspectiva complexa, por mais volúvel que pareça na superfície, revela que no fundo o eleitor alemão deseja, a um tempo, continuidade – mas sem estagnação – e renovação – mas sem ruptura.

Em favor da continuidade, os dois partidos que formam a atual “grande coalizão” e dominaram a Alemanha no pós-guerra – o mais antigo (SPD) e o maior e atual líder (CDU) – seguiram com mais votos. O líder social-democrata, Olaf Scholz, é ministro das Finanças de Merkel e vice-chanceler, o mais popular dos candidatos, e conduziu uma campanha inteligente, em parte emulando o estilo prudente de Merkel, em parte enfatizando políticas social-democratas freadas sob a liderança conservadora, como o aumento do salário mínimo.

Por outro lado, a soma dos dois “partidos do povo”, que no passado chegaram a concentrar 90% dos votos, caiu para menos de 50%. Pela primeira vez desde os anos 50, o governo deverá ser composto por uma coalizão de três partidos.

Em favor da renovação, as urnas revelam um claro desgaste do bloco CDU-CSU. Em relação às eleições de 2017, que já haviam sido um nadir para a democracia cristã, a queda foi de 8,8%. Armin Laschet, o líder do CDU, fez uma campanha desprovida de paixão e ideias, apostando que a promessa de continuidade da era Merkel bastaria para elegê-lo. O fracasso – o maior da história do bloco – põe em risco sua orientação centrista, com o previsível contra-ataque da ala conservadora, preterida na eleição pela liderança do CDU.

O fiel da balança serão os liberais (FDP) – que, com 11,5% dos votos, tiveram um ganho de 0,7% em relação ao último pleito – e, sobretudo, os Verdes. Estes chegaram a liderar as pesquisas, e o resultado final (14,8% dos votos) tem um gosto de frustração. Mas foi o melhor desempenho de sua história, com um ganho de 5,8 pontos porcentuais sobre as últimas eleições.

A primeira opção dos social-democratas será aliar-se a ambos. As divergências entre os dois não são pequenas. Mas já antes das eleições eles estavam em negociação, e se firmarem consensos terão em suas mãos grandes alavancas no próximo governo, que terá de equilibrar os anseios dos liberais por austeridade fiscal e os dos Verdes por investimentos na descarbonização.

A desidratação dos grandes partidos e a ascensão dos menores revelam o desejo por renovação. Mas sem rupturas. Tanto o extremo à esquerda quanto o extremo à direita perderam votos. O semicomunista A Esquerda seguiu sua trajetória de declínio, ficando com 4,9% (uma perda de 4,3 pontos porcentuais). A reacionária Alternativa para a Alemanha, que vinha em ascensão, sobretudo após a crise dos refugiados, perdeu 2,3 pontos porcentuais, ficando com 10,3%.

Em um período de erosão da democracia – ilustrado pela emergência dos nacionalismos nos EUA (Donald Trump) e Reino Unido (Brexit), por aventuras populistas na Itália ou pelas incertezas na França após o voto de confiança na agenda reformista de Emmanuel Macron –, a cultura política alemã dá sinais de vigor. A liderança seguirá nas mãos competentes de Angela Merkel até que se forme o novo governo, e, por incerto que seja esse processo, é um sinal de que os pulmões da democracia – a negociação e o consenso – prevaleceram sobre seus maiores patógenos – o autoritarismo e a segregação. A mensagem da principal economia e liderança europeia para o mundo (agudamente tempestiva para o Brasil) é que o centro não só pode se sustentar, mas se renovar.

Congresso abre novas brechas a pedaladas fiscais

O Globo

Estão indo pelos ares, de modo sorrateiro, os últimos resquícios de credibilidade financeira do Estado brasileiro. O Congresso Nacional aprovou, para a Lei Orçamentária de 2022, um dispositivo que institucionaliza a pedalada fiscal. Não deixa de ser irônico que a manobra se destine a financiar o novo Auxílio Brasil, o programa social eleitoreiro do presidente Jair Bolsonaro, no passado um crítico veemente do Bolsa Família e das pedaladas que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. Outra manobra em curso é romper o teto de gastos para poder pagar dívidas judiciais.

Podem parecer acomodações inofensivas diante da realidade jurídica. Lá na frente, argumentam os governistas, as contas se equilibrarão. Mas que ninguém se engane: o Congresso está implodindo dois dos pilares que ainda sustentam a saúde das contas públicas, o teto de gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O terceiro — a “regra de ouro” que proíbe contrair dívida para pagar despesas correntes — já caiu faz tempo (ela vem sendo desrespeitada há três anos pela emissão recorrente de créditos extraordinários).

Um dos dispositivos críticos da LRF determina que não sejam criadas despesas permanentes no Orçamento sem receitas correspondentes. Como não existe receita correspondente aos R$ 60 bilhões necessários para pagar o Auxílio Brasil, os congressistas se saíram com uma solução engenhosa: usaram receitas fictícias. Autorizaram, no caso de programas destinados a combater a fome ou a pobreza, criar despesas desde que já estejam em tramitação leis destinadas a fornecer as receitas, mesmo que ainda não aprovadas. E se não forem? Bem, aí ninguém conta o que acontece.

A ideia da pedalada é que os recursos venham da futura tributação sobre dividendos, recriada na reforma do Imposto de Renda aprovada na Câmara. O texto dessa reforma é repleto de defeitos, agrava as distorções do injusto sistema tributário brasileiro e certamente não sobreviverá incólume no Senado. As mudanças foram propostas sem estudos aprofundados, mas, pelas contas mais confiáveis, reduzirão a arrecadação. Nada disso importa para os parlamentares. O que interessa é abrir a porteira para a pedalada. Depois de aberta, o que mais passará?

A mesma pergunta pode ser feita sobre a manobra para driblar o teto de gastos no pagamento das dívidas judiciais, os precatórios. Não se sabe que formato terá mais essa pirueta contábil. Fala-se em considerar dentro do teto apenas R$ 40 bilhões dos quase R$ 90 bilhões a pagar. O resto não teria lastro. Abre-se a brecha para aumentar os gastos públicos além da inflação, que na certa outros tentarão aproveitar. Como não existe mágica, o dinheiro terá de vir de algum lugar.

É sintomático que o Congresso, tão cioso em aumentar os gastos na hora do aperto, não demonstre o mesmo empenho na hora de criar dispositivos que permitam controlar as despesas. A PEC Emergencial perdeu os dentes com que poderia cortar salários e jornadas do funcionalismo em caso de necessidade. O texto da reforma administrativa poupa todos os funcionários da ativa e deixa intocadas as categorias mais privilegiadas, juízes e promotores. Desta vez, aparentemente, as contas só fecharão com a ajuda do mais perverso, injusto e insidioso dos impostos: a inflação, cujo peso maior recai justamente sobre o público-alvo do Auxílio Brasil, os mais pobres.

Leilões abrem caminho para sanar problemas históricos no saneamento

O Globo

A exemplo da venda da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), que arrecadou R$ 22,6 bilhões, têm aumentado os leilões de concessões de saneamento em várias partes do país. Estão previstos seis nos próximos meses. Dois em Alagoas, dois no Ceará, um em Porto Alegre e outro no estado do Rio, do único dos quatro blocos da Cedae não arrematado em abril, reunindo bairros da Zona Oeste da capital e 18 municípios. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) deverá iniciar em breve a modelagem de ao menos outros cinco: dois na Paraíba, um em Sergipe, um em Rondônia, outro em Minas Gerais.

A atualização do Marco Regulatório do Saneamento Básico em 2020 facilitou a entrada de empresas privadas no setor e terá um papel transformador para o país em duas frentes. A principal — e mais óbvia — é tirar o Brasil da posição vexaminosa, ao lado de Honduras, Lesoto e Nepal, na lista do Banco Mundial que classifica as nações pelo percentual da população com acesso a serviços de saneamento. O Brasil, um país de renda média, uma das dez maiores economias do mundo, deveria estar noutro patamar.

Calamidade é uma das melhores palavras para descrever a situação dos 100 milhões de brasileiros sem acesso a coleta de esgoto ou dos 35 milhões sem água tratada. Sem falar que metade do esgoto recolhido no país não recebe tratamento, segundo dados do Instituto Trata Brasil. Todo dia o Brasil lança na natureza o equivalente a 5.300 piscinas olímpicas de esgoto não tratado. Proporcionar serviços de qualidade a uma parcela maior da população trará benefícios na saúde e ajudará a reduzir danos ambientais.

O segundo benefício dos leilões de saneamento, se forem bem feitos, vai além do setor. No Brasil, é comum em alguns círculos ouvir que certos serviços não deveriam ser concedidos à iniciativa privada. O bordão costuma ser “não pode haver lucro nessa atividade”. A área do saneamento é didática para desarmar esse argumento.

Nas mãos de estados e prefeituras, uma parcela considerável da população vive sem serviços considerados básicos em qualquer sociedade civilizada. Companhias de saneamento estatais, com uma ou outra exceção, costumam ser cabides de emprego e destaque apenas quando o assunto é incompetência. Sem coragem de cobrar tarifas realistas, sem o menor poder de investimento, sem a mínima capacidade gerencial, governadores e prefeitos de diferentes matizes políticos condenam os mais pobres a continuar sem água tratada e rede de esgoto.

Qualquer concessão à iniciativa privada, principalmente as que envolvem atividades monopolísticas, deve ser feita com todos os cuidados para evitar potenciais abusos. Se executadas corretamente, são a melhor chance de tirar o Brasil do atraso não apenas no saneamento, mas em várias outras áreas.

Consumo das famílias recua e põe em risco a retomada

Valor Econômico

As projeções para a evolução do PIB no próximo ano estão sendo cada vez mais reduzidas

No início do mês, o IBGE já havia informado que o consumo das famílias estagnou no segundo trimestre e ficou 6% inferior ao do fim de 2020. Agora, levantamento do Centro de Estudos de Mercados de Capitais (Cemec), da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) revela que, em parte, isso ocorreu em consequência do aumento da poupança feita pelas famílias como colchão de segurança. O objetivo é amortecer eventuais choques causados pela segunda onda da pandemia, pelo aumento das incertezas na economia e na política, pela alta da inflação e dos juros. Muitos desses fatores continuarão presentes nos próximos meses, inibindo a demanda e dificultando a retomada da economia.

Responsável por pouco mais de 60% do PIB pelo lado da demanda, o consumo das famílias totalizou R$ 1,3 trilhão no segundo trimestre em comparação com R$ 2,1 trilhões do PIB total do período a preços de mercado. O consumo ficou no mesmo patamar do início do ano, quando havia caído em consequência principalmente do fim do auxílio emergencial. A retomada do benefício, em valor menor, não animou a demanda. Na comparação com o quarto trimestre de 2019, antes da pandemia, o consumo está 3% menor.

Com base em dados do Banco Central (BC) e de entidades do setor financeiro, o Cemec-Fipe calculou que a poupança financeira das famílias totalizou R$ 117 bilhões no 2º trimestre, quase cinco vezes mais do que os R$ 23,5 bilhões do 1º trimestre, acumulando R$ 473,4 bilhões desde o início de 2019. O estoque elevado é coerente com os dados das Contas Nacionais, que mostram que a taxa de poupança atingiu recorde de 20,6% do PIB.

A poupança financeira reunida pelas famílias no segundo trimestre ficou abaixo dos R$ 171 bilhões do mesmo período de 2020, quando chegou a um pico com a disseminação da primeira onda da pandemia que tornou compulsório o isolamento social, inibiu gastos em atividades como refeições fora do domicílio, viagens e lazer. Houve também o impulso por poupar mais como precaução diante da incertezas da manutenção do emprego e até da possibilidade de se ficar doente.

Várias dessas preocupações persistem e algumas até ficaram mais agudas, inibindo o consumo e reforçando a poupança. A inflação está em trajetória de alta, sustentada pela desvalorização do real, que impulsiona a alta dos preços dos produtos importados, e pela maior demanda internacional de bens como alimentos e minérios. A crise hídrica também é fator de elevação dos preços. Para segurar a inflação, o BC está aumentando os juros, o que encarece o crédito e estimula as aplicações financeiras. À incerteza econômica se somou a insegurança política, provocada pelas ameaças do presidente Jair Bolsonaro de mudar as regras do jogo. Como resultado, o Índice de Confiança do Consumidor (ICC) da FV, caiu em setembro pelo segundo mês consecutivo, voltando ao menor patamar desde abril (Valor 27/9)

Mas essa é apenas parte da história. As famílias de mais baixa renda também são atingidas pelo cenário negativo, e de modo mais contundente por não terem condições de fazer poupança financeira. Embora o emprego tenha apresentado ligeira melhora, especialmente o informal, a massa salarial não acompanha nem de perto a inflação. O rendimento médio dos trabalhadores caiu 3% em termos reais no segundo trimestre, comparado ao primeiro trimestre, e recuou 6,6% sobre o mesmo período em 2020. Como a inflação está sendo puxada por itens como alimentos, gás e energia elétrica, penaliza mais a baixa renda. Nos 12 meses até agosto, o IPCA acumulou alta de 9,68%. Para as famílias de renda muito baixa, porém, a inflação em 12 meses chegou a 10,63%, nos cálculos do Ipea.

Ainda não se sabe como será financiado o Auxílio Brasil, programa que dará continuidade ao Bolsa Família. Os juros em alta para combater a inflação trazem como efeito colateral o encarecimento do crédito e complicam a situação da elevada parcela de endividados. Quase 73% das famílias tinham alguma dívida em agosto, segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

Nos dois casos, na alta e na baixa renda o consumo acaba se retraindo, inibindo a recuperação. Esperava-se que o avanço da vacinação favorecesse a reabertura das atividades, animando a economia. Pode até haver alguma expansão no último trimestre, mas já não se prevê que 2022 será auspicioso. As projeções para a evolução do PIB no próximo ano estão sendo cada vez mais reduzidas, da mesma forma com o que acontece com as estimativas para o consumo das famílias.

Política do tumulto

Folha de S. Paulo

Sem boas opções ante a realidade do mercado, Bolsonaro desgasta a Petrobras

Jair Bolsonaro tem uma política própria para a Petrobras e os combustíveis: de tempos em tempos, reclama dos preços altos ou insinua uma intervenção na empresa; pouco depois, recua das bravatas, como se apenas tivesse se excedido, e afirma de modo inconvincente que respeitará as regras do jogo.

A síntese desse vaivém é a irresponsabilidade. Como de costume, o presidente faz parecer que está de mãos atadas —e posa de inconformado perante seus seguidores.

Tal estratégia canhestra não se conduz sem danos institucionais, não raro com efeitos econômicos. Bolsonaro coloca em dúvida a autonomia da direção da Petrobras e ameaça a continuidade do sistema de preços. Assim, lança descrédito sobre a companhia, que perde valor de mercado e vê crescer seus custos de financiamento.

Dados os riscos do intervencionismo e o peso da gigante estatal, os faniquitos do Planalto acabam por degradar as condições financeiras do mercado como um todo. Para piorar, a demagogia conta com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o garantidor do mandato presidencial.

Após tantas investidas sem outra consequência além do tumulto especulativo, resta saber se Bolsonaro ainda convence sua audiência.

Por ocasião dos mil dias passados desde a sua posse, o chefe de Estado mais uma vez arengou sobre combustíveis. Horas depois, a direção da Petrobras reafirmou que continuaria a fixar seus preços de acordo com flutuações do valor do barril de petróleo e da taxa de câmbio. No dia seguinte, reajustou o preço do diesel.

Mais reajustes virão —há escassez no mercado global de energia. Bolsonaro apelará a mais ameaças nebulosas ou vai tomar alguma providência para atenuar os impactos sobre a população?

Noticia-se que está nos planos do governo a criação de um fundo que financie um subsídio para o consumidor nos momentos de alta mundial do petróleo —e que receberia recursos de volta em caso de queda de preços internacionais.

Um mecanismo do tipo, tal como a Cide, apenas é capaz de atenuar variações, não o patamar de preços. Não será uma solução que agradará a seguidores acostumados à promessa de soluções mágicas do bolsonarismo.

A questão, no entanto, tem implicações eleitorais; no limite, pode suscitar greves de caminhoneiros. Bolsonaro está emparedado entre seus impulsos populistas e a realidade inescapável de mercado.

Como sua gestão carece de ideias e articulação, restam as opções de uma providência tardia e de baixo impacto, como o tal fundo, e algum tipo de represamento de preços que prejudicaria a Petrobras ou o Tesouro —e o contribuinte.

Desleixo cruel

Folha de S. Paulo

Escassez de remédios para o tratamento de câncer revela incúria no Orçamento

Desde 20 de setembro, pacientes com câncer e outras enfermidades também sofrem com a escassez de radiofármacos essenciais para tratamento e diagnóstico. A situação tem feito com que hospitais adiem ou cancelem procedimentos que utilizam esses produtos.

Tão deplorável quanto evitável, o transtorno ocorre após o principal fabricante nacional das substâncias, o Instituto de Pesquisa Energética e Nuclear (Ipen), órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, interromper sua produção por falta de verbas.

Base da chamada medicina nuclear, os radiofármacos utilizam pequenas quantidades de materiais radioativos em sua composição, como o lutécio-177, aplicado contra tumores neuroendócrinos, e o iodo radioativo, usado contra câncer de tireoide. Esses são dois dos insumos que deixaram de ser fornecidos pelo Ipen.

Além dos pacientes oncológicos, são beneficiários das substâncias pessoas com problemas cardíacos e, em menor medida, os acometidos por demência e epilepsia.

Segundo a Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear, a interrupção da produção de radiofármacos, usados em cerca de 2 milhões de procedimentos anuais, pode afetar até 10 mil pacientes/dia.

Embora alertado com antecedência, o governo federal só liberou recursos emergenciais no dia 22. Porém a verba de R$ 19 milhões, conquanto permita a retomada da produção, esperada para o dia 1º, é suficiente para apenas mais duas semanas de atividades.

O episódio, para além do drama humano que o cerca, exemplifica também o desleixo com que governo e Congresso tratam a elaboração do Orçamento.

Aprovada com grande atraso, a peça trazia desde o início previsão de recursos sabidamente insuficiente para garantir a produção anual do instituto —exemplo da incapacidade de Executivo e Legislativo de estabelecer um planejamento realista para as despesas federais.

Como se não bastasse, só no final de agosto o governo enviou ao Congresso projeto para a concessão de R$ 34 milhões extras ao Ipen, o qual, até agora, não foi votado. Serão necessários, ademais, outros R$ 55 milhões para garantir as operações até o fim do ano.

A recomposição das verbas é o mínimo neste momento. Fundamental é que governantes e legisladores compreendam que, para certas atividades, a previsibilidade orçamentária é, literalmente, vital.

 

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