Valor Econômico
Os republicanos já cruzaram seu Rubicão
“Um ‘cesarismo’ americano agora tomou
corpo”. Escrevi isso em março de 2016, antes mesmo de Donald Trump se tornar o
candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos. Hoje, a transformação
da república democrática em uma autocracia avançou. Em 2024 ela poderá ser
irreversível. Se isso de fato acontecer, mudará quase tudo no mundo.
Ninguém descreveu esse perigo de forma mais
convincente do que Robert Kagan. Seu argumento pode ser reduzido a dois
elementos principais. Primeiro, o partido Republicano é definido não pela
ideologia, e sim por sua lealdade a Trump. Segundo, o amadorístico movimento
“parem de roubar” da última eleição se transmutou em um projeto bastante
avançado. Uma parte desse projeto é remover autoridades que barraram o esforço
de Trump de reverter os resultados das eleições. Mas seu principal objetivo é
transferir a responsabilidade de decisão dos resultados eleitorais para
legislaturas controladas pelos republicanos.
Se o ciclo normal da política der aos republicanos o controle da Câmara e do Senado, Trump estará protegido e servido pelo Congresso a partir de 2022. Ele detém uma grande maioria na Suprema Corte. Os republicanos controlam todos os níveis de poder em 23 Estados
Assim, se a saúde permitir, Trump será o
próximo candidato republicano. Ele será apoiado por um partido que agora é sua
ferramenta. E o mais importante: nas palavras de David Frum, ex-redator dos
discursos de George W Bush, “o que os Estados Unidos não tinham antes de 2020
era um grande movimento nacional disposto a justificar a violência da multidão
para reivindicar o poder político. Agora têm”. Isso ocorre porque seus membros
acreditam que seus adversários não são americanos “verdadeiros”. Uma democracia
liberal não pode durar muito se um grande partido acredita que a derrota não é
legítima e deve ser tornada impossível.
Aqui está um líder político que expulsou de
posições de influência em seu partido todos os que se opuseram a ele. Ele
acredita que foi perseguido injustamente, define a realidade para os seus
seguidores e insiste que uma eleição legítima é aquela que ele vence. Uma crise
constitucional se aproxima. As eleições de 2024, alerta Kagan, poderão trazer o
“caos”. “Imagine semanas de protestos concorrentes em vários Estados, enquanto
parlamentares dos dois partidos reivindicam vitória e acusam o outro de
esforços inconstitucionais para tomar o poder”.
Suponha que Trump seja reeleito,
legitimamente ou por manipulação. É preciso presumir que sua postura ingênua e
incompetente no exercício do poder em seu primeiro mandato não se repetirá. Ele
agora precisa entender que precisará de apoiadores devotos, dos quais haverá
muitos, para comandar os departamentos responsáveis pela Justiça, segurança
interna, receita federal, espionagem e defesa. Ele certamente colocará
autoridades pessoalmente leais a ele no comando das Forças Armadas. E não menos
importante: ele fará seu leal partido Republicano confirmar as pessoas que ele
escolher, se conseguir a maioria no Senado, o que é bem provável.
Com a mesma certeza, ele usará a pressão
que pode exercer sobre os ricos e os influentes para colocá-los na linha. O
capitalismo de compadrio está entre as probabilidades. Pergunte aos húngaros,
que vivem numa “democracia iliberal” sob um homem admirado pelos especialistas
de direita dos EUA.
“Os americanos - e quase todos os políticos
- se recusaram a levar a sério essa possibilidade, a ponto de tentar evitá-la”,
observa Kagan. “Como tantas vezes tem acontecido em outros países onde líderes
fascistas surgem, seus supostos adversários ficam paralisados, confusos e
espantados com esse autoritário carismático”.
Considere o que aconteceu durante a
tentativa de golpe de Trump contra as eleições de 2020 e como os parlamentares
republicanos e apoiadores desde então se reuniram para evitar que alguém
importante, acima de tudo o próprio Trump, fosse responsabilizado. Os únicos
participantes importantes que foram punidos são aqueles que resistiram ou condenaram
o golpe. Os republicanos já cruzaram seu Rubicão.
Por que isso aconteceu? A resposta é uma
mistura de ganância, ambição e raiva num país que se tornou cada vez mais
dessemelhante e uma economia que não conseguiu proporcionar uma prosperidade
segura a uma grande parcela da população. Isso criou uma coalizão familiar
construída sobre “desajustados” de fora, a glorificação da nação, a proteção
aos ricos e a adoração de um grande líder. 57% dos republicanos consideram uma
reação negativa à vacina como algo mais arriscado que a própria covid-19. Isso
é uma medida de tribalismo.
Um colapso da democracia liberal nos EUA
ainda pode ser evitado? Possivelmente. Mas não será tão fácil quanto muitos
supõem com o fracasso da tentativa de Trump de derrubar o resultado das
eleições de 2020. Ele está em pleno controle de seu partido. Se o ciclo normal
da política der aos republicanos o controle da Câmara e do Senado, ele estará
protegido e servido pelo Congresso a partir de 2022. Ele detém, em princípio,
uma grande maioria na Suprema Corte. Os republicanos também controlam todos os
níveis de poder em 23 estados, enquanto os democratas controlam apenas 15.
Kagan deposita suas esperanças em uma
decisão de um número suficientemente grande de senadores republicanos de aprovar
uma legislação de direitos de voto, e na recusa do Judiciário de revogar tal
legislação. No entanto, mesmo aqueles que detestam Trump continuam leais ao
partido. E, conforme mostra a discussão sobre o teto da dívida, eles estão
determinados a fazer Biden fracassar.
Suponha que Trump volte ao poder em 2024,
determinado a se vingar de seus inimigos, apoiado pelo Congresso e pela Suprema
Corte. Sim, mesmo isso poderá ser apenas um interlúdio. Trump está velho: sua
morte poderá ser o fim do momento autoritário. Mas nem o sistema eleitoral, nem
o partido Republicano voltarão a ser o que eram. Este último é agora um partido
radical com uma agenda reacionária.
Os EUA são a única superpotência
democrática. Sua transformação política em curso tem profundas implicações para
as democracias liberais de todas as partes, bem como para a capacidade do mundo
de cooperar em tarefas vitais, como o gerenciamento dos riscos climáticos. Em
2016, foi possível ignorar esses perigos. Hoje, é preciso ser cego para fazer
isso. (Tradução de Mário Zamarian)
*Martin Wolf é editor e
principal analista econômico do Financial Times
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