Folha de S. Paulo
Motivo mais imediato da crise é a falta de
gás na Europa, que contagia outros mercados
Falta energia no mundo. A crise pode ser
transitória, em parte resolvida em parte com arranjos políticos até o final do
ano, mas encarece
combustíveis, como a sua gasolina, e a produção de algumas indústrias e
serviços, quando não a paralisa. A inflação
mundial vai aumentar um pouco mais. Com algum azar e sem arranjos, a
crise pode se prolongar até bem entrado o verão do Hemisfério Sul e o inverno
do Norte. Nesse caso, haverá mais dificuldades do que preços algo maiores.
O problema mais novo e imediato é a falta
de gás natural, retirado das profundezas do chão. Em um ano, o preço do gás
mais do que dobrou nos Estados Unidos e quadruplicou, mais ou menos, na Europa
—estão nos níveis mais altos em cerca de sete anos.
A Europa depende em parte de gás para fazer eletricidade e para aquecimento doméstico. Fábricas de metais, fertilizantes e materiais de construção do mundo inteiro usam gás. Com o preço do produto nas alturas, começa-se a recorrer mais a óleo combustível, o que pressiona ora marginalmente e ainda mais o preço do barril de petróleo. A produção dos poços por ora está limitada por decisão do cartel dos grandes produtores, a Opep.
É fácil perceber que a falta de energia
contribui para o aumento
dos preços em geral; altas de preços persistentes podem limitar o
crescimento econômico, a “retomada” da crise da pandemia. Basta pensar no
efeito sobre o custo do aço e de fertilizantes. A falta de gás criou problema
até para a produção de gelo seco na Inglaterra, dificultando e encarecendo o
transporte de mercadorias refrigeradas.
Os preços
do gás e da eletricidade subiram tanto que Itália, Espanha e França
estão subsidiando consumidores residenciais. Empresas de distribuição de
eletricidade na Inglaterra estão indo à breca, por causa da alta de custos e de
preços de venda limitados, em parte. A Espanha propôs um arranjo europeu de
compra conjunta de gás, para que a eurozona não fique “à mercê” dos
fornecedores. O preço da gasolina aumentou cerca de 50% nos Estados Unidos, em
um ano. Alguns comentaristas dizem que esse é um dos motivos da queda de
popularidade do presidente Joe Biden.
Falta gás porque: 1) o inverno europeu de
2020-21 foi frio e comprido, o que reduziu os estoques além da conta; 2) países
europeus desestimulam a produção de gás ou fecham grandes campos de exploração,
como um na Holanda, por motivos variados; 3) o maior fornecedor de gás da
Europa, a Rússia, não tem aumentado a oferta, por motivos complicados e ainda
não muito bem compreendidos até pelos europeus; 4) a China consome mais gás
porque quer limpar o ambiente, usando menos carvão. A Ásia paga caro e leva o
gás americano, por exemplo; 5) até Brasil e Argentina entram na lista, pois ora
compram mais gás dos EUA, para abastecer termelétricas, que substituem as
usinas hidrelétricas secas; 6) as usinas eólicas na Europa, no Reino Unido em
particular, estão produzindo menos eletricidade por causa da falta de vento; 7)
o furacão Ida prejudicou a produção no Golfo do México.
A reabertura das economias depois do que
“passou o pior” da epidemia, contribuiu para a alta dos combustíveis, que
tinham ido ao nível de colapso, no ano passado. A escassez de agora dá mais um
impulso a essa recuperação de preços.
O barril do petróleo (Brent) chegou a US$
80 nesta terça-feira, maior preço em três anos.
Enquanto não há solução para os problemas
do gás, os preços no Hemisfério Norte sobem, pois é preciso fazer estoques para
o inverno. Se o inverno no Norte for muito frio, a situação vai piorar, assim
como vamos ter problemas
por aqui no Brasil se não chover muito a partir de novembro.
Uma crise ainda mais feia de preços ainda
parece evitável. A Rússia talvez possa fornecer mais gás. Há um problema enrolado
aqui. Os russos acabaram
de concluir um gasoduto que parte quase da sua fronteira com a
Finlândia e chega na Alemanha, passando pelo Mar Báltico, o Nord Stream 2. A
obra foi muito contestada por americanos e alguns europeus; sofreu sanções, por
assim dizer. Com o gasoduto novo, os russos podem largar os seus canos de gás
que passavam pela Ucrânia. Se a Ucrânia não tem mais essa utilidade, dizem
ocidentais, é possível que os russos até invadam o país, entre outros problemas
geopolíticos, embora a Alemanha seja a favor do gasoduto. Segundo a especulação
diplomática europeia, pois, os russos usam a escassez de gás para obter o fim
de sanções a seu gasoduto. É possível também que estejam apenas ou também
repondo seus estoques vazios.
Em breve, a Opep pode permitir aumentos
adicionais de produção de petróleo. Não resolve o problema de falta de gás
natural, mas o atenua ou segura a alta do petróleo. A especulação dos analistas
é que o cartel não vai conter a produção (e faturar ainda mais com preços mais
altos) até asfixiar os clientes, como fez nos anos 1970. Querem apenas garantir
que o preço do barril flutue em uma faixa alta o suficiente para que o
rendimento dos poços pague a conta das despesas de seus governos, mas não alta
em excesso, que estimularia a entrada de concorrentes no mercado.
Por fim, a certo preço, alguns produtores
americanos de gás (“shale”) podem voltar a se interessar em produzir e outros
podem investir em centros de distribuição. No entanto, também nos Estados
Unidos se procura desestimular o uso de gás, o que é um problema: o
investimento para lidar com uma crise de curto prazo pode não dar retorno.
Em tese, o pior da crise é evitável, ao
menos no que diz respeito aos gargalos de gás e petróleo mais imediatos. Os
gargalos, porém, podem não ser tão breves. Críticos variados do programa de
descarbonização (ou do seu ritmo e de seu planejamento) dizem que a Europa se
lançou em um programa de desestímulo
de produção e uso de combustíveis fósseis sem antes dispor de
alternativa confiável para crises ao menos pontuais de oferta de energia. Isto
é, tributou os fósseis, criou um mercado caro de permissão de uso de carbono,
desmonta unidades produtivas. No longo prazo, tende a funcionar. Em crises de
oferta, como agora, piorada pela desordem provocada pela epidemia, pode ter de
lidar com uma conta de luz e aquecimento cara e revolta popular.
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