Valor Econômico
Nesse processo, ganharam espaço as
prioridades eleitorais e paroquiais dos congressistas, em detrimento de
políticas de interesse coletivo
A apropriação de fatias cada vez maiores do
Orçamento a serem definidas por emendas parlamentares avançou com força nos
últimos anos, levando a um resultado pouco transparente e muito preocupante. Em
2021, um pouco mais da metade do investimento da União deverá ser decorrente
dessas emendas - serão R$ 18,9 bilhões de um total previsto de R$ 37 bilhões, segundo
consta do Orçamento deste ano.
Os números aparecem em artigo de Paulo
Hartung, ex-governador do Espírito Santo, e dos economistas Marcos Mendes,
pesquisador associado do Insper, e Fabio Giambiagi, pesquisador associado do
Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre),
publicado na edição deste mês da revista “Conjuntura Econômica”, da FGV.
Chefe da assessoria especial do ministro da Fazenda de 2016 a 2018, Mendes diz que, com esse processo, o Orçamento fica mais rígido, “na medida em que as emendas se repetem ano após ano e vã se tornando uma espécie de direito adquirido dos parlamentares”. Além disso, fica menos transparente porque “há um processo de indicação de despesas e contemplação de parlamentares, comandado pelos presidentes das duas Casas do Congresso e seu entorno político”.
Mendes nota ainda que essa captura do
Orçamento pelas emendas parlamentares reduz a qualidade do gasto público. “Não
há dúvida de que a prioridade para gastos paroquiais, dissociados das
prioridades nacionais, consome recursos que poderiam ser empregados em
programas de maior impacto social, seja por investimentos públicos, seja por
gastos correntes em educação, renda básica ou saúde, por exemplo.”
No artigo, Mendes, Hartung e Giambiagi
afirmam que, além de o país já ter um nível muito baixo de investimento
público, mais da metade das emendas é aplicada de forma pulverizada. “Esse
expediente diminui ainda mais o já exíguo espaço para obras de infraestrutura e
programas de ciência e tecnologia, por exemplo, que seriam importantes para uma
maior produtividade e crescimento econômico”, escrevem eles.
A maior apropriação do Orçamento pelas
emendas parlamentares começou há seis anos. “Nesse processo, ganharam espaço as
prioridades eleitorais e paroquiais dos congressistas, em detrimento das
políticas de interesse coletivo, pulverizando-se os recursos”, dizem os três
autores.
Para Mendes, o problema começou com a
recusa da então presidente Dilma Rousseff de montar um governo de coalizão que
refletisse o tamanho das bancadas no Congresso. “O presidente Jair Bolsonaro
cometeu o mesmo erro”, diz ele. “A partir do momento em que os partidos médios
e grandes não têm acesso ao poder, participando de um governo de coalizão, eles
passam a buscar influência política por outros meios. O meio escolhido foi
capturar parte substancial do Orçamento”, aponta Mendes.
Ele lembra que o processo teve início com a
emenda constitucional que tornou as emendas parlamentares individuais
obrigatórias. Depois, veio a obrigatoriedade das emendas de bancada. Em
seguida, a possibilidade de transferir dinheiro diretamente para Estados e
municípios, sem vinculação a projeto específico. “Por fim, ressuscitou-se a
emenda de relator, instrumento que era usado pelos anões do Orçamento, no longínquo
1993, para finalidades nada republicanas. Agora a situação piorou, pois, além
de terem criado normas que os favorecem, os membros da elite parlamentar têm um
governo Bolsonaro fraco em suas mãos, e dão as regras do jogo. Com isso, podem
jogar para cima o valor das emendas de relator, porque Bolsonaro terá que
aceitar.”
Por fim, a Lei de Diretriz Orçamentária
(LDO) que fixou as regras para o Orçamento de 2021 ampliou a prática da
transferência direta, estendendo o mecanismo também para as de bancada - antes,
ela estava restrita às emendas individuais. “Foram criadas dotações genéricas,
que são distribuídas de forma pouco transparente entre os parlamentares da
coalizão política dos dirigentes do Congresso. Torna-se então muito difícil
acompanhar quem indicou qual despesa”, diz o artigo.
O valor total das emendas parlamentares
previstas no Orçamento de 2021 é de quase R$ 34 bilhões (não se restringindo a
investimentos), distribuído entre os três diferentes tipos - as individuais (R$
9,7 bilhões), as das bancadas estaduais (R$ 7,3 bilhões) e as do relator (R$
16,9 bilhões). “Estas últimas representam metade desse total. Isso configura um
enorme poder discricionário na mão de um grupo muito reduzido de parlamentares,
representando uma certa ‘casta’ que se cristaliza com esse expediente, o que
não é do interesse público nem da totalidade dos parlamentares”, escrevem eles.
“Para ter uma ideia da distorção alocativa e da importância desse valor de R$
34 bilhões, vale lembrar que uma política pública muito relevante - o Censo
Demográfico - não foi incluída no Orçamento de 2021, devido à alegação de falta
de recursos, quando seu custo seria de R$ 2 bilhões: apenas 6% do valor alocado
para emendas.” Os três autores reforçam que as emendas já tomam parte relevante
dos gastos, representando 15% de toda a despesa de livre alocação do Orçamento.
Para Hartung, Mendes e Giambiagi, “revisar
essa lógica é uma exigência que será demandada a quem for eleito em 2022, a
começar por uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que derrube esses
dispositivos, incluindo as emendas impositivas. Estas não fazem parte da
tradição da estrutura do presidencialismo brasileiro. O país evitaria, assim,
as distorções apontadas na LDO de 2021 e de 2022, na caminhada do
fortalecimento da democracia”.
Mudar esse quadro, porém, não será fácil.
“Acho que os líderes políticos do Congresso já consideram essas emendas um
direito adquirido”, diz Mendes, observando que os parlamentares não vão querer
perder a “enorme alavancagem política” que os valores elevados das emendas lhes
concedem.
“Infelizmente, o processo foi subvertido, e
as emendas são consideradas como dadas. Ninguém nem cogita que elas não
ocorrerão. Mesmo em 2023, será muito difícil reverter esse estado de coisas.
Passou a ser uma pauta prioritária reverter essa contrarreforma”, afirma
Mendes.
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