segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Sergio Lamucci - A captura do Orçamento por emendas parlamentares

Valor Econômico

Nesse processo, ganharam espaço as prioridades eleitorais e paroquiais dos congressistas, em detrimento de políticas de interesse coletivo

A apropriação de fatias cada vez maiores do Orçamento a serem definidas por emendas parlamentares avançou com força nos últimos anos, levando a um resultado pouco transparente e muito preocupante. Em 2021, um pouco mais da metade do investimento da União deverá ser decorrente dessas emendas - serão R$ 18,9 bilhões de um total previsto de R$ 37 bilhões, segundo consta do Orçamento deste ano.

Os números aparecem em artigo de Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, e dos economistas Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, e Fabio Giambiagi, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), publicado na edição deste mês da revista “Conjuntura Econômica”, da FGV.

Chefe da assessoria especial do ministro da Fazenda de 2016 a 2018, Mendes diz que, com esse processo, o Orçamento fica mais rígido, “na medida em que as emendas se repetem ano após ano e vã se tornando uma espécie de direito adquirido dos parlamentares”. Além disso, fica menos transparente porque “há um processo de indicação de despesas e contemplação de parlamentares, comandado pelos presidentes das duas Casas do Congresso e seu entorno político”.

Mendes nota ainda que essa captura do Orçamento pelas emendas parlamentares reduz a qualidade do gasto público. “Não há dúvida de que a prioridade para gastos paroquiais, dissociados das prioridades nacionais, consome recursos que poderiam ser empregados em programas de maior impacto social, seja por investimentos públicos, seja por gastos correntes em educação, renda básica ou saúde, por exemplo.”

No artigo, Mendes, Hartung e Giambiagi afirmam que, além de o país já ter um nível muito baixo de investimento público, mais da metade das emendas é aplicada de forma pulverizada. “Esse expediente diminui ainda mais o já exíguo espaço para obras de infraestrutura e programas de ciência e tecnologia, por exemplo, que seriam importantes para uma maior produtividade e crescimento econômico”, escrevem eles.

A maior apropriação do Orçamento pelas emendas parlamentares começou há seis anos. “Nesse processo, ganharam espaço as prioridades eleitorais e paroquiais dos congressistas, em detrimento das políticas de interesse coletivo, pulverizando-se os recursos”, dizem os três autores.

Para Mendes, o problema começou com a recusa da então presidente Dilma Rousseff de montar um governo de coalizão que refletisse o tamanho das bancadas no Congresso. “O presidente Jair Bolsonaro cometeu o mesmo erro”, diz ele. “A partir do momento em que os partidos médios e grandes não têm acesso ao poder, participando de um governo de coalizão, eles passam a buscar influência política por outros meios. O meio escolhido foi capturar parte substancial do Orçamento”, aponta Mendes.

Ele lembra que o processo teve início com a emenda constitucional que tornou as emendas parlamentares individuais obrigatórias. Depois, veio a obrigatoriedade das emendas de bancada. Em seguida, a possibilidade de transferir dinheiro diretamente para Estados e municípios, sem vinculação a projeto específico. “Por fim, ressuscitou-se a emenda de relator, instrumento que era usado pelos anões do Orçamento, no longínquo 1993, para finalidades nada republicanas. Agora a situação piorou, pois, além de terem criado normas que os favorecem, os membros da elite parlamentar têm um governo Bolsonaro fraco em suas mãos, e dão as regras do jogo. Com isso, podem jogar para cima o valor das emendas de relator, porque Bolsonaro terá que aceitar.”

Por fim, a Lei de Diretriz Orçamentária (LDO) que fixou as regras para o Orçamento de 2021 ampliou a prática da transferência direta, estendendo o mecanismo também para as de bancada - antes, ela estava restrita às emendas individuais. “Foram criadas dotações genéricas, que são distribuídas de forma pouco transparente entre os parlamentares da coalizão política dos dirigentes do Congresso. Torna-se então muito difícil acompanhar quem indicou qual despesa”, diz o artigo.

O valor total das emendas parlamentares previstas no Orçamento de 2021 é de quase R$ 34 bilhões (não se restringindo a investimentos), distribuído entre os três diferentes tipos - as individuais (R$ 9,7 bilhões), as das bancadas estaduais (R$ 7,3 bilhões) e as do relator (R$ 16,9 bilhões). “Estas últimas representam metade desse total. Isso configura um enorme poder discricionário na mão de um grupo muito reduzido de parlamentares, representando uma certa ‘casta’ que se cristaliza com esse expediente, o que não é do interesse público nem da totalidade dos parlamentares”, escrevem eles. “Para ter uma ideia da distorção alocativa e da importância desse valor de R$ 34 bilhões, vale lembrar que uma política pública muito relevante - o Censo Demográfico - não foi incluída no Orçamento de 2021, devido à alegação de falta de recursos, quando seu custo seria de R$ 2 bilhões: apenas 6% do valor alocado para emendas.” Os três autores reforçam que as emendas já tomam parte relevante dos gastos, representando 15% de toda a despesa de livre alocação do Orçamento.

Para Hartung, Mendes e Giambiagi, “revisar essa lógica é uma exigência que será demandada a quem for eleito em 2022, a começar por uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que derrube esses dispositivos, incluindo as emendas impositivas. Estas não fazem parte da tradição da estrutura do presidencialismo brasileiro. O país evitaria, assim, as distorções apontadas na LDO de 2021 e de 2022, na caminhada do fortalecimento da democracia”.

Mudar esse quadro, porém, não será fácil. “Acho que os líderes políticos do Congresso já consideram essas emendas um direito adquirido”, diz Mendes, observando que os parlamentares não vão querer perder a “enorme alavancagem política” que os valores elevados das emendas lhes concedem.

“Infelizmente, o processo foi subvertido, e as emendas são consideradas como dadas. Ninguém nem cogita que elas não ocorrerão. Mesmo em 2023, será muito difícil reverter esse estado de coisas. Passou a ser uma pauta prioritária reverter essa contrarreforma”, afirma Mendes.

 

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