O Globo
As manifestações bolsonaristas de amanhã
devem ser grandes. Houve empenho do governo, intensa campanha nas redes
sociais, financiamento para aluguel de ônibus do interior — enfim, um esforço
excepcional.
Elas podem até ter algumas consequências
adiante, mas, do ponto de vista de objetivo político, são um momento de sonho
para vestir fantasias que não sobrevivem na quarta-feira.E, quando não há
objetivo político válido, dificilmente uma força se impõe, mesmo havendo muita
gente e até poder militar.
Uma das bandeiras do bolsonarismo está
praticamente morta. É o voto impresso. Foi derrotado no contexto legal em que
deveria ser analisado, e não há como voltar atrás. Nesse caso particular, estarão
simplesmente carregando um defunto, na expectativa de que lhes possa ser válido
no ano que vem, em caso de derrota eleitoral.
A outra bandeira do bolsonarismo será,
aparentemente, a liberdade de expressão. Em termos abstratos, ninguém se coloca
contra ela. A dificuldade é aceitar que se preguem a violência e a invasão de
prédios públicos como se estivessem exercitando a liberdade, quando, de fato,
ultrapassam seus limites legais.
Essa aceitação de limites está presente, por exemplo, no parecer da subprocuradora Lindôra Araújo, que denunciou o ex-deputado Roberto Jefferson.
Isso não significa que o tema não deva ser
constantemente discutido. E o é no Brasil. Juízes têm censurado jornais; há
debates sobre instruções do Supremo relativas a combate a fake news; o próprio
Bolsonaro rejeitou uma lei que penaliza a divulgação em massa de notícias
falsas. É um tema em aberto, mas a conclamação à violência e o racismo, para
citar alguns, são limites legais que não podem ser transpostos apenas por atos
de vontade.
Bolsonaro é presidente. Tem pouco a dizer
diante de uma pandemia que não desapareceu, como creem alguns otimistas.
Governa um país em que a economia estagnou, encontra diante de si uma crise
hídrica que se desdobra também numa crise de energia.
Numa situação dessas, o presidente lidera
manifestações pelo voto impresso ou por uma duvidosa concepção de liberdade.
Isso é tão distante da realidade como conclamar as pessoas a comprar fuzis e
definir como idiota quem está preocupado com os alimentos, cada vez mais caros.
O exame dos problemas reais do Brasil
implica a definição da responsabilidade do presidente. Até a crise hídrica, de
certa forma determinada por fenômenos como La Niña, seria mais branda se não
houvesse tanto desmatamento e tantas queimadas estimulados pelo governo
Bolsonaro.
Pode ser que se ouça nas ruas algum grito
contra a corrupção. Mas será de uma amarga ironia. Bolsonaro apenas se
aproveitou da bandeira. Os fatos descritos na CPI mostram como gigantescos
golpes estavam armados contra os cofres públicos. As denúncias de rachadinha
contra o filho ex-deputado estadual estendem-se ao filho vereador e alcançam o
próprio gabinete de Bolsonaro.
Como se não bastassem essas revelações, o
encontro com o setor fisiológico do Congresso revela que Bolsonaro, como ele
próprio diz, se originou no Centrão e sempre se localizou nesse espaço
político.
Muita gente pode ir para a rua, mas, se
estiverem perdidos, de nada adianta serem muitos se perdidos de armas na mão.
O Brasil vive um momento dramático de crise
sanitária ainda não vencida, crise econômica e social, crise ambiental, seca e
escassez de energia, quase 15 milhões de desempregados.
Uma grande manifestação que ignore essa
realidade e um presidente que se esconde dela servem apenas para mostrar como é
profundo o abismo em que nos metemos e como será difícil superá-lo sem um
grande debate sobre a reconstrução.
A cortina de fumaça que Bolsonaro cria para
tentar sobreviver politicamente não nos deixa avaliar ainda quanto a
democracia, o tecido social e os recursos naturais foram devastados neste
período. É uma tarefa para a quarta-feira de cinzas.
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