O Globo
Uma semana antes do 7 de Setembro, a
Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) publicou o manifesto
do bolsonarismo. A Fiesp e a Febraban ensaiaram o discurso da democracia,
curiosamente definida como “harmonia entre os Poderes”. Em contraponto, a Fiemg
intitulou sua declaração com a senha de combate da extrema direita: Manifesto
pela Liberdade.
Há um centro de comando único do
bolsonarismo, uma espécie de Comitê Central que esculpe seus discursos. O texto
da Fiemg não foi escrito em Belo Horizonte, mas no Planalto. Na hora em que
vinha a público, as bandeiras dos atos bolsonaristas de amanhã sofriam uma
padronização, organizando-se em torno da senha principal. Tudo — os ataques ao
STF, as injúrias contra governadores e parlamentares, a contestação das urnas
eletrônicas — será recoberto por uma mão de tinta fresca que exibirá a palavra
liberdade.
“Assistimos a uma sequência de
posicionamentos do Poder Judiciário que acabam por tangenciar, de forma
perigosa, o cerceamento à liberdade de expressão no país”, escrevem os
industriais mineiros para condenar o inquérito das fake news — e, de passagem,
oferecer um apoio implícito ao pedido de impeachment do juiz Alexandre de
Moraes. Liberdade, desdobrada em “liberdade de expressão” e “liberdades
individuais”, eis a mensagem.
A senha emerge, igualmente, em textos assinados pelo ministro da Defesa, Braga Netto, um expoente da agitação bolsonarista entre os militares. Na nota de repúdio às declarações do senador Omar Aziz (7 de julho), o general proclama que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”. Pouco depois, em nota de desmentido de ameaças de golpe (22 de julho), ele expressa o compromisso das Forças Armadas com “a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”.
Detalhe: a Constituição atribui às Forças
Armadas as missões de “defesa da Pátria”, “garantia dos poderes
constitucionais” e, por iniciativa de um deles, proteção “da lei e da ordem”. A
“liberdade do povo brasileiro” é uma invenção (in)constitucional de Braga Netto
— ou melhor, dos mestres ideológicos que o controlam.
A extrema direita brasileira é uma ideia
fora de lugar, uma mercadoria importada, a imitação sem disfarce de um discurso
elaborado nos EUA ao longo de mais de dois séculos. Lá, a noção de liberdade
foi moldada em oposição aos conceitos de democracia e igualdade perante a lei.
A “liberdade dos estados” funcionou como oposição à existência de uma
Constituição nacional, depois como alicerce do sistema escravista e,
finalmente, como moldura das leis de segregação racial. Hoje, reciclada, a
reivindicação fundamenta as legislações destinadas a restringir o acesso às
urnas em estados controlados pelos republicanos.
A alt-right, nova direita americana,
dirigida pelo antigo assessor de Trump, Steve Bannon, subordinou a direita
cristã tradicional a um caldo ideológico que mescla ideias libertárias e
preconceitos nativistas. O comércio desregulado de armas foi abrigado sob a
“liberdade individual”. A “liberdade de expressão” converteu-se em passaporte
para a difamação em redes sociais ou a conclamação à violência contra as
instituições democráticas. A invasão do Capitólio, experimento libertário da
alt-right, tornou-se um modelo para a ação estratégica da direita bolsonarista
no Brasil.
Liberdade, essa noção elástica, redefiniu o
discurso do movimento antivacina nos EUA. As alegações anacrônicas de que as
vacinas geram moléstias (autismo!) não desapareceram, mas foram envelopadas na
exigência da “liberdade de escolha” ou, no caso da imunização infantil, da
“liberdade das famílias”. Sob o impacto das campanhas libertárias, dois quintos
dos americanos continuam sem receber nenhuma dose das vacinas anti-Covid, e o
sarampo reapareceu em surtos localizados.
Fora da democracia, liberdade é privilégio
de uma minoria que tem poder. Os arautos brasileiros da “liberdade” são os
saudosistas da ditadura militar que hoje acalentam o sonho de um golpe contra
as liberdades democráticas.
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