O Globo
O governo Bolsonaro comemora mil dias. Já
escrevi e falei sobre o tema, analisando a trajetória política desse
experimento. Mas ainda não parei para me perguntar como foi possível manter,
ainda que de forma precária, a sanidade mental neste país enlouquecido.
Jamais poderia imaginar um governo tão
singular como o de Bolsonaro, no qual crimes e trapalhadas se entrelaçam de tal
maneira, tragicômico. Quando comecei a entender de política, o confronto
esquerda-direita tinha outros contornos. Nosso bairro proletário era getulista.
A simpatia juvenil estava ao lado dos vizinhos. Mas havia gente como meu pai,
que votava no brigadeiro Eduardo Gomes.
A encarnação da direita naqueles anos tinha
outro perfil. Votem no brigadeiro, diziam as mulheres que o apoiavam, ele é
bonito e é solteiro. Até um doce foi criado em homenagem a ele.
Quando Bolsonaro postou aquela famosa cena
de golden shower, perguntando do que se tratava, percebi que estávamos num
outro momento histórico. A clássica e austera direita dava margem a um sensacionalismo
radiofônico que, sob a máscara de moralidade, usava as cenas de crime e sexo
para garantir audiência.
Quando o então secretário de Cultura, Roberto Alvim, fez um discurso imitando o líder nazista Joseph Goebbels, dizendo que a arte brasileira seria heroica e imperativa, percebi também um novo tom.
Dificilmente os governos militares que
dominaram o país a partir de 1964 aceitariam um discurso abertamente nazista,
sobretudo porque um dos orgulhos nacionais foi exatamente a participação na
Segunda Guerra no lado oposto a Hitler.
Não só a vulgaridade, mas uma certa visão
moderna de inconsequente colagem de ideologias estava em jogo. Assim como uma
concepção também muito moderna de que não existe a verdade dos fatos, mas
apenas versões. O que é mais um componente assombroso da atualidade.
Alguém definiu assim o diálogo com os novos
atores políticos: é como se jogasse xadrez com pombos, eles desarrumam o
tabuleiro e saem cantando vitória.
A versão cinematográfica de quase todas as
taras do governo pode ser encontrada, em cores, naquele vídeo da reunião de 22
de abril de 2020. Em primeiro lugar, a assombrosa fala de Bolsonaro defendendo
que as pessoas se armem para combater a ditadura, insinuando que ela se
encarnava nos governadores que defendiam restrições sociais contra a pandemia.
Interessante ver como os generais que o
apoiam assistiam calados e satisfeitos com o discurso, algo que no passado
seria impensável. Na mesma reunião, o então ministro do Meio Ambiente propunha
derrubar as regras ambientais, deixar a boiada passar, enquanto o Brasil se
preocupava com a pandemia. No mesmo filme, veremos Bolsonaro dizendo que
precisa da PF para proteger a família e aliados e um ministro da Educação
propondo a prisão de ministros do STF.
Em Leipzig, no início dos anos 90, cobri
manifestações dos skinheads, jovens que têm simpatias pelo nazismo. Creio que
posso dizer isto com tranquilidade: entre eles havia mais consciência ambiental
que no governo Bolsonaro, para o qual devastar os recursos naturais é um ato de
fé.
Há todo um capítulo ainda dos rituais
próprios do governo Bolsonaro: conversas no cercadinho, motociatas, o escudo
com a expressão “imbrochável”, os dedos imitando armas, empunhar o violão como
se fosse um fuzil.
Em termos feministas, isso seria uma masculinidade
tóxica. Eu diria, a começar pelas motociatas, uma masculinidade evanescente.
Você monta numa motocicleta, ostenta um
escudo de imbrochável e, a cada instante, imita uma arma com os dedos: creio
que até um estagiário de psicologia arriscaria a óbvia interpretação.
É difícil classificar tudo isso. Não me
parece longe de algo que possa ser descrito como a carnavalização do fascismo.
É, ao mesmo tempo, engraçado e letal, uma fanfarra em verde-amarelo com 600 mil
mortes na pandemia, milhares de árvores derrubadas, milhões de animais
carbonizados.
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