O Globo
Ao passar a Presidência para (o de súbito
pacificado) Hamilton Mourão (qual será o acordo?), Jair Bolsonaro falou em
folga. É como o chefe de Estado brasileiro — um destruidor infeliz, agente
dilapidador que não gosta de trabalhar, despreza a República e a democracia
representativa — compreende uma viagem oficial: folga. Escape. Talvez mesmo
liberdade.
Liberdade para — segundo a compreensão
bolsonarista de direito individual — forjar inimigos artificiais, difundir
conspirações, apregoar desconfianças, investir contra a estabilidade
institucional e — por que não? — distribuir pancadas.
Garanto que se divertiu em Roma;
especialmente ao ver seus cachorros mordendo jornalistas. Ele não precisaria
ter ordenado a caçada para haver ordenado a caçada. Apito soprado faz tempo; e
todos os dias. A palavra de um presidente, tanto mais a de um líder
personalista que se mitifica, resulta. São anos de pregação até um arranjo
autoritário em que jornalistas tenham de agradecer quando apenas intimidados.
Não nos enganemos: aquilo — o que se viu na
blitz da milícia de Bolsonaro contra a imprensa — é biscoito para a base social
extremista há semanas chateada com o presidente cujas barbaridades
restringiram-se, reduziram-se, à desqualificação de vacinas. Como!? Somente
isso!?
Não nos enganemos: o assalto contra jornalistas foi o gozo entre bolsonaristas. Desqualificar vacinas já é pouco. A turma quer — acostumou-se com — mais. Quer conflito. E aqui convém projetar, com bastante segurança, o que será o ano eleitoral a vir: uma campanha violenta, materialmente violenta, de riscos sem precedente, e não apenas para profissionais de imprensa, em que as pessoas — como gangues — sairão no braço. Briga de rua, sob o espectro da forra pela facada.
A turma quer confronto. O presidente, por
ora, não pode entregar. Não a contento. E, então, a viagem; o 7 de Setembro
exportado. A folga. O biscoito.
Pai de Flávio, sócio do conglomerado
dirigido por Arthur Lira, em dúvida entre os partidos de Ciro Nogueira e
Valdemar da Costa Neto, com João Roma por ministro do Planejamento e Augusto
Aras, da Defesa, em parte sossegado pelo delegado Alexandre de Moraes, em outra
pela necessidade de não atrapalhar a costura do Orçamento para a reeleição em
2022, Bolsonaro foi bancar o antiestablishment na Itália.
O ataque físico a jornalistas foi o auge de
seu propósito em Roma, afago concreto nos seus. Nada, porém, definirá melhor a
passagem pela reunião do G20, dedicada ao consumo dos radicais bolsonaristas,
do que a imagem de presidente isolado. Tem método. Aquele que não se mistura.
Que não se adéqua. Que não se conforma à liturgia burocrática da União
Europeia. Que não sabe e não quer dançar a música globalista.
Biscoito.
Não teve encontros bilaterais: biscoito.
Não ficou em rodinhas de saguão com Trudeau e Macron: biscoito. Não deu aperto
de mão no primeiro-ministro italiano, o anfitrião: biscoito. À vontade apenas
com garçons, falando de futebol: biscoito. Nós, os elitistas, nos
escandalizamos: biscoito. Eis o roteiro que alimenta o populista autocrático,
eleito contra o sistema, que, em casa, tem Ricardo Barros como líder no
Parlamento.
Um tal estelionatário eleitoral precisa
mesmo buscar campos mais favoráveis ao exercício das fantasias que enredam os
crentes. Os fiéis, mesmo aborrecidos, exigem pouco. E decerto terá pensado — o
presidente do Brasil que, segundo jactância ao colega autocrata turco Erdogan,
“não aceitou indicação de ninguém” para compor o ministério, logo o chefe de
Fábio Faria, Flávia Arruda, João Roma e Ciro Nogueira — que encontraria na
Itália condições para mentir sem refutações; não sendo improvável que a
frustração dessa expectativa tenha robustecido a selvageria contra a imprensa.
Biscoito.
O cálculo de Bolsonaro, gerador de caos que
só pensa em permanecer no poder, é simples e funcional; e precisará de “folgas”
como essa tirada na Europa: cultivar — ministrando extremismos, não raro socos
no estômago — os seus 15% de fiéis, pesar na caneta presidencial para encorpar
os votos via máquina, daí por que a morte do teto de gastos e a multiplicação
dos bilhões para bancar a sociedade com Lira, e avançar ao segundo turno apostando
novamente em que o sentimento antilulopetista, ora adormecido e de força
subestimada, mobilize-se. E, se não der para vencer, ter volume para tumultuar.
Conta com sabujos ressentidos como Marcelo
Queiroga — boa mostra do apoiador bolsonarista mais engajado — para isso; um
miserável moral que pensa ganhar existência servindo como ministro da Saúde de
Jair Bolsonaro.
É como encerro, aliás: com a memória da
cara de mario-frias de Queiroga contando ao diretor da OMS, talvez babasse de
prazer, que passeará com o presidente em Haia por também ser acusado de
genocida. Um homem que reage assim — servil ao cinismo — ante a acusação de ter
responsabilidade objetiva pela morte de milhares de pessoas é mesmo livre.
Não se pode subestimar, não nos tempos que
correm, a capacidade competitiva desses patriotas.
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