Correio Braziliense
As vítimas da covid-19 foram
sepultadas em caixões lacrados, sem que amigos e familiares pudessem ver, pela
última vez, o rosto de seus entes queridos
Na crônica A morte dos outros, publicada no livro Alta ajuda (Foz Editora), o
filósofo e professor Francisco Bosco — filho do cantor e compositor João Bosco
— afirma que se uma divindade lhe desse a chance de fazer um único pedido, não
seria um pedido para a vida, mas para a morte. “Eu escolheria como morrer,
aliás, como não morrer: eu pediria que, entre as infinitas formas possíveis de
encontrar a morte, eu fosse poupado unicamente de ser buscado por ela em um
acidente de avião.”
Segundo ele, todos sabemos que vamos morrer, mas o que torna suportável a nossa finitude é ela ser indeterminada, porque não sabemos quando vamos morrer e, por isso, essa é uma verdade encoberta, como uma doença indolor. Por isso, é tão aterrorizante ser desenganado por uma doença incurável e saber que os nossos dias estão contados. Entretanto, Bosco não tem medo do perigo, da morte no mar ou mesmo num voo de asa delta, já levou até um tiro durante um assalto, mas não quer morrer num acidente aéreo:
“Deus não permita que eu morra em um avião.
Um Airbus que não sei quem construiu, não sei quem nomeou, não sei quem
abasteceu, não sei quem pilotou. Sentado espremido no meio de centenas de
pessoas que eu não sei quem são. Emboscado por um céu que não sei qual é.
Emboscado por uma emboscada que não saberei qual é. E que não terá rosto. E que
nem mesmo tocará a minha pele. Que me matará sem me conhecer. E que não poderei
lutar. E de nada valerá a força do meu corpo. Nem minha força moral. Nem toda a
minha história. E assim nem serei um homem. Nem terei tempo de pensar no meu
amor. E morrerei assim sem sentido. E ter-me-ão roubado a única coisa que
sempre tive: meu rosto sairá nos jornais junto aos rostos dos demais, e minha
morte será apenas dos outros.”
De Platão e Epicuro a pensadores como
Arthur Schopenhauer, Sören Kierkegaard, Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger,
a morte é um tema recorrente na Filosofia. Nas religiões, tem um lugar
especialmente reservado: o dia de finados, que está associado ao luto eterno
dos familiares e amigos pela perda do ente querido. Francisco Bosco é um
filósofo do nosso cotidiano, seu pavor em relação aos acidentes de avião é
muito comum, a ponto de muitos passageiros terem síndrome de pânico em pleno
voo.
O maior acidente aéreo do Brasil ocorreu em
17 de julho de 2007. Chocou o Brasil e o mundo. Ao aterrissar no aeroporto de
Congonhas, em São Paulo, o Airbus A320-233 — usado no voo 3054, procedente de
Porto Alegre — avançou além da pista, cruzou a Avenida Washington Luís e se
chocou com um posto de gasolina e com um prédio da própria empresa responsável
pela aeronave, a TAM (atual Latam). Morreram todos os 187 passageiros e
tripulantes a bordo e outras 12 pessoas em solo, totalizando 199 óbitos.
Desastre sanitário
Tão horroroso quanto o acidente de
Congonhas foi o colapso dos hospitais de Manaus, entre abril e maio do ano
passado, quando a cidade chegou a registrar 140 sepultamentos num único dia, em
cova rasa, contra uma média de 30 óbitos diários. A maioria das mortes ocorreu
por asfixia: faltou oxigênio nos hospitais da cidade para atender aos pacientes
de covid-19.
O desastre sanitário foi o coroamento de
uma inepta gestão do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, à frente
de uma equipe de militares despreparados. Sob comando do presidente Jair
Bolsonaro, na base do “ele manda, eu obedeço”, trataram a pandemia como uma
“gripezinha” e acreditavam que a “imunização de rebanho” era a estratégia
correta de combate à pandemia. E que bastaria a cloroquina para mitigar os
efeitos letais do vírus.
O luto dos familiares e amigos das vítimas
da pandemia equivale à 3.050 tragédias de Congonhas, o que faz de hoje um
finados ainda mais triste. As vítimas de covid-19 foram sepultadas em caixões
fechados, com os corpos lacrados, sem que amigos e familiares sequer pudessem
ver, pela última vez, o rosto de seus entes queridos. Em muitos casos, as
mortes poderiam ter sido evitadas com isolamento social, máscaras, álcool em
gel e, sobretudo, vacinas. Mas o luto dessas famílias e de seus círculos de amizade
não morreu, ainda existe, porque o amor transcende a vida da pessoa amada. A
pandemia está sendo controlada, mas o Brasil permanece enlutado.
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