Folha de S. Paulo
Com Alckmin, Lula veste a fantasia de
candidato da unidade antibolsonarista
Uma flor de pré-campanha condenada a
murchar sob as intempéries do verão. Foi mais ou menos assim que uma jornalista
arguta definiu o ensaio de chapa Lula/Alckmin,
em conversa privada. Talvez ela tenha razão. Ou não: a flor implausível seria
um lance de mestre de Lula e, ainda, atenderia aos interesses de um Alckmin
ousado que emerge do exílio político.
Lula selou o
triunfo original, de 2002, por meio da Carta ao Povo Brasileiro, na qual se
comprometia a respeitar contratos e conservar o equilíbrio macroeconômico.
Capturar Alckmin,
torre indefesa no tabuleiro sucessório, equivale a escrever uma segunda versão
da célebre carta.
É, quase, xeque-mate. Não, obviamente, por uma suposta torrente de eleitores sob controle do ex-governador, algo que se revelou ilusório em 2018, mas pelo impacto simbólico da flor da conciliação. A missão de Lula é alcançar o Planalto pela autopista do primeiro turno, evitando as traiçoeiras estradas vicinais do segundo. A figura do vice afastaria temores de amplas parcelas do eleitorado, limando os perigosos índices de rejeição que cercam sua candidatura. Com Alckmin, o ex-presidente veste a fantasia de candidato da unidade antibolsonarista: segunda e terceira vias, ao mesmo tempo.
Indignação entre as bases petistas? O único
argumento contrário à chapa da concórdia é de espantosa ingenuidade. Diante do
fato consumado, os petistas ideológicos percorreriam as três conhecidas etapas
do luto político: negação ("é fake news", "vai rachar antes da
campanha"), furor raivoso ("traição", "capitulação")
e, finalmente, resignação ("o vice é irrelevante"). O PT segue Lula,
para o bem ou o mal. E nem o PSOL, sob comando do lulista Boulos, romperia com
o que batizariam como "frente ampla democrática".
Alckmin quer mesmo é retornar ao
Bandeirantes –e, de mais a mais, subordinando-se a Lula, perderia a
centro-direita sem jamais seduzir a esquerda. O raciocínio de certos analistas
tem lógica, mas apenas a lógica estreita da prudência convencional.
Governar São Paulo vale mais que ocupar a
cadeira marginal da vice-presidência. Alckmin, contudo, não tem perspectiva de
vitória automática no pleito paulista. Por outro lado, na aventura nacional,
ele miraria efetivamente a Presidência, em horizonte mais extenso: Lula, ícone
insubstituível da esquerda brasileira, completará 81 em 2026.
Vices carecem de
poder real, mas acariciam a ambição realista de trocar de cadeira. O vice
singular, protagonista na dissolução de uma polarização de três décadas,
disporia da oportunidade histórica de redesenhar um mapa eleitoral borrado pela
ausência de Lula e pela falência do PSDB.
Jogada magistral do Lula de sempre,
experimento audaz de um Alckmin reinventado. Mas, do ponto de vista dos
interesses da sociedade brasileira, como avaliar a flor da conciliação?
Celso Rocha de Barros a classificou como
corolário improvável de "inteligência coletiva" e "senso de
responsabilidade" (Folha, 7/11). Segundo sua análise
esperançosa, a chapa representaria uma integração de legados: a política
macroeconômica de FHC mais a política social de Lula.
Sou mais cético, na esfera da
responsabilidade econômica. De um lado, exceto nos parêntesis de processos de
impeachment, vices cumprem função decorativa: as presenças do empresário José
Alencar e do líder emedebista Michel Temer não moderaram os impulsos
lulopetistas de populismo fiscal. De outro, a política econômica de Lula
sujeitou-se implacavelmente às conveniências mutáveis de seu projeto de poder,
oscilando da pragmática ortodoxia (Lula 1) à farra orgiástica (Lula 2,
radicalizado por Dilma 1).
Primavera, tempo de flores. "Não há nada que não possa ser reconciliado", esclareceu Lula em Bruxelas, referindo-se à hipotética chapa com um "muito honrado" Alckmin. Conciliação foi, no passado, o outro nome do Brasil.
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