sábado, 20 de novembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Desmate pedalado

Folha de S. Paulo

Com 13.235 km devastados na Amazônia, evapora-se o verniz verde exibido na COP26

Agora se entende melhor por que o governo Jair Bolsonaro evitou divulgar antes da COP26 o dado anual de desmatamento em 2021: o número continua a crescer de forma alarmante. Não combinaria com a imagem de país comportado ensaiada na recém-concluída cúpula do clima anunciar 13.235 km² de devastação na Amazônia Legal.

A estatística do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais é a pior desde 2006 e implica aumento de 22% sobre o apurado um ano antes, 10.851 km². Consolida-se a volta ao patamar de cinco dígitos, por força das políticas ambientais (ou ausência delas) capitaneadas por um hoje ex-ministro de péssima lembrança, Ricardo Salles.

As taxas atuais evocam as de períodos anteriores a políticas de controle do desmate, que lograram reduzir o corte da floresta a 4.600 km² em 2012. Depois de anos de cifras moderadas, verificou-se um salto de 29% de 2018 para 2019. A superfície devastada no ano mais recente corresponde a metade do território do estado de Alagoas.

Algo como 750 milhões de árvores foram ao chão em 12 meses, enquanto o governo se aliava à banda mais atrasada do agronegócio, manietava Ibama e ICMBio, paralisava demarcações de terras indígenas e quilombolas estipuladas na Constituição e arrancava nacos das unidades de conservação.

O próprio setor rural, e com ele o país, deverá sentir no bolso as consequências da ação política temerária. Um dia antes de desovar os números atrasados do desmatamento, o governo de Bolsonaro viu a Comissão Europeia propor o banimento de importações de soja e carne ligadas a desmatamento.

Aprovada a moção, o ônus da prova recairá sobre produtores e "traders": evidenciar que suas commodities não cresceram em terras oriundas de desmatamento, suas próprias ou de terceiros.

A pecuária, mais afeita ao negacionismo ambiental e climático, já enfrentava dificuldade com a recusa chinesa a receber carne brasileira, sob alegação de dois casos isolados de doença da vaca louca.

Agora são os EUA que ameaçam seguir a mesma trilha da pressão, usando qualquer pretexto disponível para pressionar Brasília. O lobby dos produtores americanos alega que o Brasil não se compromete a informar com a devida presteza eventuais problemas sanitários.

Bolsonaro e seu ministro Joaquim Leite talvez tenham achado que iriam engabelar chefes de Estado e de governo em Glasgow com a mesma facilidade com que inundam as redes sociais com notícias fraudulentas e delirantes. Estão aí os dados para desmoralizá-los.

Choque de mortalidade

Folha de S. Paulo

Covid impulsiona alta do número de óbitos, o que tende a se repetir em 2021

Dados revelados pelo IBGE nesta semana fornecem um retrato trágico dos impactos provocados pela Covid-19 na sociedade brasileira.

Foram registrados, no ano passado, nada menos que 1.510.068 óbitos no país, de acordo com as Estatísticas do Registro Civil, publicadas anualmente pelo instituto.

Mais impressionante que o número em si, porém, é o crescimento anotado. A cifra representa um aumento de 14,9% na comparação com 2019. Trata-se, de longe, da maior variação percentual de mortes de um ano para outro desde 1984 —à época, contudo, a subnotificação era bem mais expressiva do que se mostra agora.

Em 2018 e 2019, por exemplo, as elevações do indicador em relação aos anos precedentes foram, respectivamente, de 0,7% e 2,6%.

Embora o crescimento de 195.965 mortes registrado em 2020 seja bastante próximo dos 194.976 óbitos por Covid-19 confirmados pelo consórcio de veículos de imprensa no mesmo período, deve-se considerar, para efeitos de comparação, que os dois levantamentos se baseiam em fontes e metodologias diferentes.

Ainda assim, o impacto descomunal da pandemia fica evidente quando se observa o perfil etário dos óbitos. O aumento de mortes no ano passado na população acima de 60 anos, grupo mais suscetível às formas graves da doença, foi de espantosos 148.561, equivalente a 75,4% da variação total de mortes na comparação com 2019.

Inversamente, a quantidade de mortes entre menores de 15 anos caiu 15,1%. Parte desse declínio —notadamente entre bebês com menos de 1 ano— pode ser atribuída, segundo o IBGE, à queda no número de nascimentos, cujo total em 2020 foi de 2.678.992, uma redução de 4,7% ante 2019.

Ainda que os óbitos tenham crescido em todas as unidades da Federação, tal incremento distribuiu-se de forma desigual no país.

O maior deles, não por acaso, ocorreu no estado do Amazonas, cujo sistema de saúde colapsou no ano passado em razão da pandemia. Registraram-se ali 31,9% a mais de mortes que em 2019. Na outra ponta da lista ficou o Rio Grande do Sul, que conheceu números relativamente baixos da doença em 2020, com uma alta de 4%.

Diante do impacto da Covid-19 na dinâmica demográfica nacional, é forçoso lembrar que quase 70% de todas as mortes causadas pela doença no país —mais de 612 mil— se deram em 2021.

Não constituirá surpresa, portanto, se o escabroso aumento de óbitos verificado em 2020 vier a ser superado neste ano.

Situação na Amazônia está fora de controle

O Estado de S. Paulo

A devastação na Amazônia está descontrolada. Além dos impactos ambientais, os impactos socioeconômicos serão sentidos por anos

Ninguém se dirá surpreso com o aumento do desmate na Amazônia – políticas públicas têm consequências e sua destruição também –, mas a aceleração é estarrecedora mesmo para o mais sombrio dos pessimistas. A devastação, que no primeiro ano do governo atingiu a maior área em uma década, cresceu no segundo ano e no terceiro explodiu. A situação está fora de controle.

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais, entre agosto de 2020 e julho de 2021 foram desmatados 13.235 km², o maior volume desde 2006. A diferença é que naquele ano o desmate estava em queda, chegando ao menor patamar histórico, 4.571 km², em 2012. O aumento galopante dos últimos 12 meses, quase 22%, não era observado desde 1998, quando subiu 24%. Desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo, o volume dobrou.

A fiscalização diminuiu na proporção inversa. O País registrou o menor número de multas ambientais em 20 anos. Em 2019 e 2020 os autos de infração contra a flora caíram pela metade em relação à década anterior. O governo fechou unidades do Ibama, não renovou o quadro de fiscais e alterou regras para dificultar a autuação e facilitar anistias.

O volume de demissões e afastamentos de servidores ambientais em 2020 foi o maior desde 2010. Se a quantidade de denúncias de assédio da Associação dos Servidores do Meio Ambiente (Ascema) não fosse indício suficiente de que o recorde de processos disciplinares não se presta a retificar condutas irregulares, mas a perseguir ambientalistas, o testemunho do próprio Bolsonaro basta. Já em meados de 2019, ele comemorou a queda nas autuações. “E vão continuar diminuindo. Vamos acabar com esta indústria da multa no campo.”

O resultado veio a galope. Já em 2019, as invasões a terras indígenas cresceram 135%. Em 2019 e 2020 abriram-se as maiores áreas de garimpo nessas zonas desde os anos 80, e a destruição de florestas pela mineração ilegal aumentou dez vezes.

As consequências são catastróficas. Os desmates e queimadas respondem por quase metade das emissões de CO2 do País – que, em 2020, aumentaram 9,5%, enquanto as emissões globais caíram 7%. Além disso, afetam o regime de chuvas. Secas mais longas intercaladas por chuvas mais fortes impactam os biomas, as safras e a matriz energética e têm consequências letais no caso de enchentes.

A má-fé não está só na destruição ambiental, mas também na sua dissimulação. O governo tinha conhecimento dos dados em meados de outubro, mas impôs sigilo para não divulgá-los na Conferência Climática da ONU (COP).

Tal como o desmate é uma violência direta ao meio ambiente, a falta de transparência é uma violência direta ao direito dos brasileiros de acesso à informação. Além disso, as sequelas socioeconômicas são brutais. O princípio do crescimento econômico é o crédito. Quando os compromissos (como os assumidos na COP) e os dados do governo não são críveis, a credibilidade do País evapora e os investidores fogem. Autoridades internacionais, em parte por genuína preocupação ambiental, mas em parte por demagogia e para proteger seus próprios agricultores, ameaçam o agronegócio nacional com boicotes e sanções. A desconfiança produzida em doses industriais pelo governo é o pretexto perfeito para levá-los a cabo.

Assim, desencadeia-se um círculo vicioso. A falta de recursos internacionais para a proteção da Amazônia agrava o desmatamento. A queda nos investimentos e as sanções ao agro empobrecem toda a sociedade, em especial os produtores rurais e em particular os mais pobres, que acabam recorrendo a práticas ultrapassadas e predatórias para compensar suas perdas.

Os demais Poderes da República precisam coordenar esforços para a preservação de políticas de Estado – como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento, principal responsável pela redução de 83% do desmate entre 2004 e 2012, que foi abandonado pelo governo – e para frear a marcha da destruição, até que a sociedade ponha um basta a ela nas eleições de 2022. Até lá, o custo Bolsonaro só tende a aumentar e, depois, ainda onerará o Brasil por anos.

A pobreza que a pandemia ampliou

O Estado de S. Paulo

Problemas sociais ficaram mais graves por causa da pandemia, mas o governo poderia ter reduzido seu impacto

A dor de centenas de milhares, talvez milhões, de brasileiros que perderam familiares e amigos vitimados pela pandemia de covid-19 será, por certo, uma das lembranças mais marcantes que sobreviverão a esse difícil período por que passou, e ainda passa, o Brasil. O terrível drama em que foram lançados outros milhões e milhões de compatriotas por causa da intensidade do impacto da pandemia sobre a vida social e econômica do País será outro dos símbolos destes tempos.

Era sabido que a vida tinha piorado para todos, mas as estatísticas que dão a dimensão da degradação do quadro social na pandemia impressionam. O rendimento médio real de todas as fontes do brasileiro diminuiu 3,4%, tendo passado de R$ 2.292 em 2019 para R$ 2.213 em 2020.

Mesmo com o reforço do auxílio emergencial e de outras medidas de apoio à atividade econômica, a crise tirou R$ 10,6 bilhões do rendimento das famílias, segundo o IBGE.

Num país já pobre, as pessoas ficaram mais pobres e caiu expressivamente a parcela da renda do trabalho no orçamento das famílias. O auxílio emergencial pago pelo governo no ano passado evitou que o problema ficasse ainda pior, substituindo, nas rendas familiares, uma parte da fatia que o desemprego levou embora.

Na pandemia, 8,1 milhões de brasileiros deixaram de ter renda proveniente do mercado de trabalho – o número de pessoas com renda do trabalho diminuiu de 92,8 milhões em 2019 para 84,7 milhões em 2020. O grupo de pessoas que recebiam aposentadoria e pensão encolheu de 13% para 12,4% da população. Pode ser efeito da mortalidade da covid-19 combinada com o represamento de pedidos pelo INSS, por causa do fechamento das agências no período de isolamento social.

Já a proporção de domicílios em que pelo menos um de seus moradores recebe benefício de outros programas sociais saltou de 0,7% em 2019 para 23,7% no ano passado. O aumento se deve ao pagamento do auxílio emergencial, incluído pelo IBGE na categoria de “outros programas sociais”. Em compensação, diminuiu de 14,3% para 7,2% a proporção das famílias que recebiam o Bolsa Família, porque parte dos beneficiários desse programa passou a receber o auxílio emergencial.

Soa irônico que a desigualdade de renda do trabalho tenha diminuído num cenário de notória degradação da situação financeira das famílias. O índice de Gini – que mede a desigualdade de renda e quanto mais próximo de zero mostra menor concentração – caiu de 0,544 em 2019 para 0,524 em 2020. Trata-se de um fenômeno estatístico. A renda diminuiu para praticamente todas as faixas de renda, mas diminuiu menos nas mais baixas, por causa do auxílio emergencial, daí a redução da distância entre elas.

“Houve redução da desigualdade porque todo mundo perdeu, não é porque alguns estão ganhando”, destaca a analista do IBGE Alessandra Scalioni Brito. “É uma notícia que parece boa, mas não é.” A concentração de renda no Brasil continua expressiva. O rendimento mensal do grupo de 1% dos brasileiros com a renda mais alta é 35 vezes maior do que o dos 50% de brasileiros mais pobres.

Se o governo do presidente Jair Bolsonaro não tivesse tratado o grave problema de saúde pública com descaso por alguns considerado criminoso, nem o número de vítimas da pandemia seria tão alto nem a crise teria sido tão aguda e tão longa. O desgoverno tornou as coisas piores.

Embora o governo diga que a recuperação do mercado de trabalho é vigorosa, o desemprego continua a afetar a vida das famílias e retarda a recuperação econômica. A taxa de desocupação mantém-se em torno de 13%, há milhões de trabalhadores subutilizados e outros que, diante da persistente falta de oportunidades, estão desalentados e nem sempre saem à procura de trabalho. O aumento de vagas com carteira assinada, embora expressivo, não é suficiente para melhorar esse cenário. Não há sinais de que o quadro possa mudar nos próximos meses nem de que a recuperação econômica se intensifique. Estatísticas sobre a renda em 2021 talvez não sejam tão sombrias quanto as de 2020, mas dificilmente serão muito mais animadoras. •

 

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