EDITORIAIS
Desmate pedalado
Folha de S. Paulo
Com 13.235 km devastados na Amazônia,
evapora-se o verniz verde exibido na COP26
Agora se entende melhor por que o governo
Jair Bolsonaro evitou divulgar antes da COP26 o dado anual de desmatamento em
2021: o número continua a crescer de forma alarmante. Não combinaria com a
imagem de país comportado ensaiada na recém-concluída cúpula do clima
anunciar 13.235 km² de
devastação na Amazônia Legal.
A estatística do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais é a pior desde 2006 e implica aumento de 22% sobre o
apurado um ano antes, 10.851 km². Consolida-se a volta ao patamar de cinco
dígitos, por força das políticas ambientais (ou ausência delas) capitaneadas
por um hoje ex-ministro de péssima lembrança, Ricardo Salles.
As taxas atuais evocam as de períodos anteriores a políticas de controle do desmate, que lograram reduzir o corte da floresta a 4.600 km² em 2012. Depois de anos de cifras moderadas, verificou-se um salto de 29% de 2018 para 2019. A superfície devastada no ano mais recente corresponde a metade do território do estado de Alagoas.
Algo como 750 milhões de árvores foram ao
chão em 12 meses, enquanto o governo se aliava à banda mais atrasada do
agronegócio, manietava Ibama e ICMBio, paralisava demarcações de terras
indígenas e quilombolas estipuladas na Constituição e arrancava nacos das
unidades de conservação.
O próprio setor rural, e com ele o país,
deverá sentir no bolso as consequências da ação política temerária. Um dia
antes de desovar os números atrasados do desmatamento, o governo de Bolsonaro
viu a Comissão Europeia propor o banimento de importações de soja e carne
ligadas a desmatamento.
Aprovada a moção, o ônus da prova recairá
sobre produtores e "traders": evidenciar que suas commodities não
cresceram em terras oriundas de desmatamento, suas próprias ou de terceiros.
A pecuária, mais afeita ao negacionismo
ambiental e climático, já enfrentava dificuldade com a recusa chinesa a receber
carne brasileira, sob alegação de dois casos isolados de doença da vaca louca.
Agora são os EUA
que ameaçam seguir a mesma trilha da pressão, usando qualquer
pretexto disponível para pressionar Brasília. O lobby dos produtores americanos
alega que o Brasil não se compromete a informar com a devida presteza eventuais
problemas sanitários.
Bolsonaro e seu ministro Joaquim Leite talvez tenham achado que iriam engabelar chefes de Estado e de governo em Glasgow com a mesma facilidade com que inundam as redes sociais com notícias fraudulentas e delirantes. Estão aí os dados para desmoralizá-los.
Choque de mortalidade
Folha de S. Paulo
Covid impulsiona alta do número de óbitos,
o que tende a se repetir em 2021
Dados revelados pelo IBGE nesta semana
fornecem um retrato trágico dos impactos provocados pela Covid-19 na sociedade
brasileira.
Foram registrados, no ano passado, nada menos
que 1.510.068 óbitos no país, de acordo com as Estatísticas do
Registro Civil, publicadas anualmente pelo instituto.
Mais impressionante que o número em si,
porém, é o crescimento anotado. A cifra representa um aumento de 14,9% na
comparação com 2019. Trata-se, de longe, da maior variação percentual de mortes
de um ano para outro desde 1984 —à época, contudo, a subnotificação era bem
mais expressiva do que se mostra agora.
Em 2018 e 2019, por exemplo, as elevações
do indicador em relação aos anos precedentes foram, respectivamente, de 0,7% e
2,6%.
Embora o crescimento de 195.965 mortes
registrado em 2020 seja bastante próximo dos 194.976 óbitos por Covid-19
confirmados pelo consórcio de veículos de imprensa no mesmo período, deve-se
considerar, para efeitos de comparação, que os dois levantamentos se baseiam em
fontes e metodologias diferentes.
Ainda assim, o impacto descomunal da
pandemia fica evidente quando se observa o perfil etário dos óbitos. O aumento
de mortes no ano passado na população acima de 60 anos, grupo mais suscetível
às formas graves da doença, foi de espantosos 148.561, equivalente a 75,4% da
variação total de mortes na comparação com 2019.
Inversamente, a quantidade de mortes entre
menores de 15 anos caiu 15,1%. Parte desse declínio —notadamente entre bebês com menos de 1 ano— pode ser atribuída, segundo o
IBGE, à queda no número de nascimentos, cujo total em 2020 foi de 2.678.992,
uma redução de 4,7% ante 2019.
Ainda que os óbitos tenham crescido em
todas as unidades da Federação, tal incremento distribuiu-se de forma desigual
no país.
O maior deles, não por acaso, ocorreu no
estado do Amazonas, cujo sistema de saúde colapsou no ano passado em razão da
pandemia. Registraram-se ali 31,9% a mais de mortes que em 2019. Na outra ponta
da lista ficou o Rio Grande do Sul, que conheceu números relativamente baixos
da doença em 2020, com uma alta de 4%.
Diante do impacto da Covid-19 na dinâmica
demográfica nacional, é forçoso lembrar que quase 70% de todas as mortes
causadas pela doença no país —mais de 612 mil— se deram em 2021.
Não constituirá surpresa, portanto, se o
escabroso aumento de óbitos verificado em 2020 vier a ser superado neste ano.
Situação na Amazônia está fora de controle
O Estado de S. Paulo
A devastação na Amazônia está descontrolada. Além dos impactos ambientais, os impactos socioeconômicos serão sentidos por anos
Ninguém se dirá surpreso com o aumento do
desmate na Amazônia – políticas públicas têm consequências e sua destruição
também –, mas a aceleração é estarrecedora mesmo para o mais sombrio dos
pessimistas. A devastação, que no primeiro ano do governo atingiu a maior área
em uma década, cresceu no segundo ano e no terceiro explodiu. A situação está
fora de controle.
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisa
Espaciais, entre agosto de 2020 e julho de 2021 foram desmatados 13.235 km², o
maior volume desde 2006. A diferença é que naquele ano o desmate estava em
queda, chegando ao menor patamar histórico, 4.571 km², em 2012. O aumento
galopante dos últimos 12 meses, quase 22%, não era observado desde 1998, quando
subiu 24%. Desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo, o volume dobrou.
A fiscalização diminuiu na proporção
inversa. O País registrou o menor número de multas ambientais em 20 anos. Em
2019 e 2020 os autos de infração contra a flora caíram pela metade em relação à
década anterior. O governo fechou unidades do Ibama, não renovou o quadro de
fiscais e alterou regras para dificultar a autuação e facilitar anistias.
O volume de demissões e afastamentos de
servidores ambientais em 2020 foi o maior desde 2010. Se a quantidade de denúncias
de assédio da Associação dos Servidores do Meio Ambiente (Ascema) não fosse
indício suficiente de que o recorde de processos disciplinares não se presta a
retificar condutas irregulares, mas a perseguir ambientalistas, o testemunho do
próprio Bolsonaro basta. Já em meados de 2019, ele comemorou a queda nas
autuações. “E vão continuar diminuindo. Vamos acabar com esta indústria da
multa no campo.”
O resultado veio a galope. Já em 2019, as
invasões a terras indígenas cresceram 135%. Em 2019 e 2020 abriram-se as
maiores áreas de garimpo nessas zonas desde os anos 80, e a destruição de
florestas pela mineração ilegal aumentou dez vezes.
As consequências são catastróficas. Os
desmates e queimadas respondem por quase metade das emissões de CO2 do País –
que, em 2020, aumentaram 9,5%, enquanto as emissões globais caíram 7%. Além
disso, afetam o regime de chuvas. Secas mais longas intercaladas por chuvas
mais fortes impactam os biomas, as safras e a matriz energética e têm
consequências letais no caso de enchentes.
A má-fé não está só na destruição
ambiental, mas também na sua dissimulação. O governo tinha conhecimento dos
dados em meados de outubro, mas impôs sigilo para não divulgá-los na
Conferência Climática da ONU (COP).
Tal como o desmate é uma violência direta
ao meio ambiente, a falta de transparência é uma violência direta ao direito
dos brasileiros de acesso à informação. Além disso, as sequelas socioeconômicas
são brutais. O princípio do crescimento econômico é o crédito. Quando os
compromissos (como os assumidos na COP) e os dados do governo não são críveis,
a credibilidade do País evapora e os investidores fogem. Autoridades
internacionais, em parte por genuína preocupação ambiental, mas em parte por
demagogia e para proteger seus próprios agricultores, ameaçam o agronegócio
nacional com boicotes e sanções. A desconfiança produzida em doses industriais
pelo governo é o pretexto perfeito para levá-los a cabo.
Assim, desencadeia-se um círculo vicioso. A
falta de recursos internacionais para a proteção da Amazônia agrava o
desmatamento. A queda nos investimentos e as sanções ao agro empobrecem toda a
sociedade, em especial os produtores rurais e em particular os mais pobres, que
acabam recorrendo a práticas ultrapassadas e predatórias para compensar suas
perdas.
Os demais Poderes da República precisam
coordenar esforços para a preservação de políticas de Estado – como o Plano de
Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento, principal responsável pela
redução de 83% do desmate entre 2004 e 2012, que foi abandonado pelo governo –
e para frear a marcha da destruição, até que a sociedade ponha um basta a ela
nas eleições de 2022. Até lá, o custo Bolsonaro só tende a aumentar e, depois,
ainda onerará o Brasil por anos.
A pobreza que a pandemia ampliou
O Estado de S. Paulo
Problemas sociais ficaram mais graves por
causa da pandemia, mas o governo poderia ter reduzido seu impacto
A dor de centenas de milhares, talvez
milhões, de brasileiros que perderam familiares e amigos vitimados pela
pandemia de covid-19 será, por certo, uma das lembranças mais marcantes que
sobreviverão a esse difícil período por que passou, e ainda passa, o Brasil. O
terrível drama em que foram lançados outros milhões e milhões de compatriotas
por causa da intensidade do impacto da pandemia sobre a vida social e econômica
do País será outro dos símbolos destes tempos.
Era sabido que a vida tinha piorado para
todos, mas as estatísticas que dão a dimensão da degradação do quadro social na
pandemia impressionam. O rendimento médio real de todas as fontes do brasileiro
diminuiu 3,4%, tendo passado de R$ 2.292 em 2019 para R$ 2.213 em 2020.
Mesmo com o reforço do auxílio emergencial
e de outras medidas de apoio à atividade econômica, a crise tirou R$ 10,6
bilhões do rendimento das famílias, segundo o IBGE.
Num país já pobre, as pessoas ficaram mais
pobres e caiu expressivamente a parcela da renda do trabalho no orçamento das
famílias. O auxílio emergencial pago pelo governo no ano passado evitou que o
problema ficasse ainda pior, substituindo, nas rendas familiares, uma parte da
fatia que o desemprego levou embora.
Na pandemia, 8,1 milhões de brasileiros
deixaram de ter renda proveniente do mercado de trabalho – o número de pessoas
com renda do trabalho diminuiu de 92,8 milhões em 2019 para 84,7 milhões em
2020. O grupo de pessoas que recebiam aposentadoria e pensão encolheu de 13%
para 12,4% da população. Pode ser efeito da mortalidade da covid-19 combinada
com o represamento de pedidos pelo INSS, por causa do fechamento das agências
no período de isolamento social.
Já a proporção de domicílios em que pelo
menos um de seus moradores recebe benefício de outros programas sociais saltou
de 0,7% em 2019 para 23,7% no ano passado. O aumento se deve ao pagamento do
auxílio emergencial, incluído pelo IBGE na categoria de “outros programas
sociais”. Em compensação, diminuiu de 14,3% para 7,2% a proporção das famílias
que recebiam o Bolsa Família, porque parte dos beneficiários desse programa
passou a receber o auxílio emergencial.
Soa irônico que a desigualdade de renda do
trabalho tenha diminuído num cenário de notória degradação da situação
financeira das famílias. O índice de Gini – que mede a desigualdade de renda e
quanto mais próximo de zero mostra menor concentração – caiu de 0,544 em 2019
para 0,524 em 2020. Trata-se de um fenômeno estatístico. A renda diminuiu para
praticamente todas as faixas de renda, mas diminuiu menos nas mais baixas, por
causa do auxílio emergencial, daí a redução da distância entre elas.
“Houve redução da desigualdade porque todo
mundo perdeu, não é porque alguns estão ganhando”, destaca a analista do IBGE
Alessandra Scalioni Brito. “É uma notícia que parece boa, mas não é.” A
concentração de renda no Brasil continua expressiva. O rendimento mensal do
grupo de 1% dos brasileiros com a renda mais alta é 35 vezes maior do que o dos
50% de brasileiros mais pobres.
Se o governo do presidente Jair Bolsonaro
não tivesse tratado o grave problema de saúde pública com descaso por alguns
considerado criminoso, nem o número de vítimas da pandemia seria tão alto nem a
crise teria sido tão aguda e tão longa. O desgoverno tornou as coisas piores.
Embora o governo diga que a recuperação do
mercado de trabalho é vigorosa, o desemprego continua a afetar a vida das
famílias e retarda a recuperação econômica. A taxa de desocupação mantém-se em
torno de 13%, há milhões de trabalhadores subutilizados e outros que, diante da
persistente falta de oportunidades, estão desalentados e nem sempre saem à
procura de trabalho. O aumento de vagas com carteira assinada, embora
expressivo, não é suficiente para melhorar esse cenário. Não há sinais de que o
quadro possa mudar nos próximos meses nem de que a recuperação econômica se
intensifique. Estatísticas sobre a renda em 2021 talvez não sejam tão sombrias
quanto as de 2020, mas dificilmente serão muito mais animadoras. •
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