Folha de S. Paulo
Políticas de ação afirmativa de acesso à
educação favorecem processo virtuoso de transformação da sociedade
Como boa parte da classe média branca
brasileira, cresci e fui educado num ambiente
predominantemente segregado. Com exceção de uma colega negra, que era filha
da servente da escola onde realizei o curso primário, jamais tive colegas ou
professores negros nas escolas e universidades pública ou privada que frequentei.
Apenas quando fui estudar nos Estados
Unidos, em meados dos anos 1990, tive a oportunidade e o privilégio de conviver
com alunos e professores negros, que muito me marcaram, como Kimberlé Crenshaw.
O fato de que apenas 1,8% dos jovens negros, entre 18 e 24 anos, se encontravam no ensino universitário em 1997, conforme dados do IBGE, indica que minha experiência pessoal não foi destoante em relação ao padrão de segregação racial que imperou por mais de um século em nosso sistema de ensino universitário.
Essa realidade apenas começou a ser
alterada em 2001, com a adoção de uma pioneira política de ação afirmativa pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, paulatinamente expandida com a
criação do Prouni, em 2004, e consolidada com a promulgação
da lei 12.711, de 2012, que estabeleceu um robusto programa de ação
afirmativa para as universidades federais pela combinação de cotas sociais,
para alunos oriundos de escolas públicas e de baixa renda, e cotas raciais e
étnicas, além de cotas voltadas a alunos portadores de necessidades especiais.
Essas medidas, convalidadas pelo Supremo Tribunal
Federal, provocaram uma verdadeira
revolução no ensino universitário, antes reservado a brancos oriundos de
famílias mais afluentes e escolas de melhor qualidade. De acordo com a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), em 2018, pela primeira vez,
o número de alunos negros suplantou o de brancos na universidade pública,
apesar de persistir desigualdade racial nos cursos mais concorridos.
Proporcionalmente, o número de brancos com diploma universitário ainda é bem
maior, mas os avanços são evidentes. Como salientou o professor
José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, esse conjunto de
políticas constitui "a mais criativa, consistente e potente engenharia do
Estado brasileiro para combater o racismo".
O fato é que políticas de ação afirmativa
de acesso à educação, não apenas contribuem para corrigir distorções
estruturais sedimentadas pelo racismo e pela desigualdade –e, portanto, são uma
questão de justiça–, como também favorecem um processo virtuoso de qualificação
do ensino e transformação da sociedade. Nesse sentido, o reforço das políticas
de ação afirmativa, sobretudo com a criação
de mais e melhores condições para a permanência de alunos negros e de baixa
renda na universidade, é uma condição indispensável para qualquer projeto
sustentável e equitativo de desenvolvimento econômico, estabilização da
democrática e consolidação do Estado de direito no Brasil.
Como salienta Hédio Silva, grande advogado
e ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, embora as ações afirmativas
constituam o pilar de uma política antirracista, elas devem estar associadas a
outras medidas urgentes, como o "combate
ao crescente racismo religioso, voltado a suprimir a dignidade do povo
preto" e a "interrupção urgente do extermínio sistemático de jovens
negros em nossas periferias sociais", sem o que a combalida democracia
brasileira seguirá incompleta.
Neste dia de tributo a Zumbi de Palmares, Dia da Consciência Negra, é necessário apelar à consciência de brancos antirracistas para se juntarem ao povo negro nessa dura, mas indispensável caminhada pela supressão dos grilhões que estruturam o racismo brasileiro.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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