Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Somos o oposto de países cuja economia se
organiza com base nos pressupostos civilizados de que a vida e o bem-estar são
capitais sociais
A sombria indiferença social de muitos
patronos e defensores deste modelo econômico, que arrasta o país para a
incerteza e o abismo, justifica as perguntas que se lhes deve fazer. E, também,
fazê-las aos cúmplices que, de vários modos, políticos e não políticos, lhes
garantem a inacreditável sobrevida. Indiferença que indica a nenhuma
preocupação com as vítimas deste subcapitalismo. Vítimas que são potenciais
atores de um desenvolvimento econômico e social apenas possível. Aqui a
indiferença terá custos históricos muito altos.
Quanto custa um faminto à economia, à
sociedade e ao Estado? Não estou falando da ajuda financeira tópica que sequer
sacia sua fome. Mas dos desdobramentos da fome e da pobreza nos diferentes
âmbitos da realidade por ela afetados.
Quanto custa um desempregado? Um subempregado? Uma pessoa em situação de rua, um desesperançado? Um ser humano indevidamente doente porque não teve os meios para alimentar-se corretamente e evitar doenças e deficiências evitáveis que têm preço a curto e a longo prazo? Quanto custa à economia e à sociedade um doente cuja doença por muito menos poderia ter sido prevenida? Quanto custa à economia e à sociedade o barateamento dos custos do que não pode nem deve ser barato? Por que não poupar no que é desnecessariamente caro para aplicar na vida que é cara mas necessária?
Nesta sociedade tudo tem preço, mesmo o ar
expirado dos sem-máscara que pode matar outros. Todos pagamos por esse crime, o
da ignorância prepotente. Quanto custa ao país a irresponsabilidade dos que
violam as medidas de segurança de todos e, ignorantes, proclamam o que não
sabem, a ciência que não conhecem, a medicina que subestimam? Quanto custa ao
país e a todos a “medicina” do palpite tolo? Quanto custa à sociedade e à
própria economia a vida daqueles em cuja formação a sociedade investiu muito,
da amamentação à educação, e que sucumbem quando poderiam ter sobrevivido para
devolver ao país o que custaram? Quanto custa ao sistema econômico um morto
inadimplente?
Quanto custa a agonia dos que padecem as
insuficiências sociais do Estado irresponsável? Quanto custa à sociedade, às
famílias e até ao Estado a morte dos que morrem antes do tempo? Quanto custa à
condição humana a politicagem matadora? Quanto de subdesenvolvimento econômico
é devido aos excessos e desperdícios da política do poder pelo poder, do lucro
pelo lucro?
Quanto custam os problemas sociais da
subvida na pseudo-habitação que se espalha pelas grandes cidades? Quanto de
futuro do país e da sociedade inteira custa o modo de vida de milhões de
pessoas que vivem à margem dos padrões normais e civilizados porque carecem dos
meios para viver como os demais?
Quanto custa viver sem esperança na
ausência de meios para tê-la? Pois é preciso ter ao menos a certeza de um dia
de amanhã para ter esperança. No Brasil, não há, para milhões de pessoas, nem
mesmo a certeza do dia de hoje. Amanhecer sem o café fumegando na caneca de
lata. Sem o pão bíblico da primeira refeição, mesmo que seja o pão duro catado
no lixo, o pão que restou do excesso de boca dos que têm mais do nela cabe.
Quanto custa ao país o Estado omisso e
perdulário, em relação a essas questões? Quanto custa a todos nós a mamata dos
que dispõem mais do que o necessário para legislar e governar?
Somos o oposto de países cuja economia se organiza
com base nos pressupostos civilizados de que a vida e o bem-estar são capitais
sociais, são lucro quando não são utilizadas para dar prejuízo lucrativo.
Porque todo desvalimento dessa humanidade
tem um preço. Não só pelo prejuízo que ela involuntariamente dá, nos custos que
de sua situação injusta e anômala decorrem. Mas pela riqueza que não cria,
pelos bens que não compra nem consome, pelo ganho que não gera, porque sem
emprego produtivo, sem trabalho.
Quanto custa o subcapitalismo brasileiro ao
capitalismo que pode ser e não é? Quanto custam às empresas os empresários que
não o são porque orientados por ideologias subcapitalistas lucrativas agora e
causadoras de prejuízos definitivos amanhã, do agora sem o depois, do lucro sem
compromisso social com o próprio futuro e o futuro da imensa maioria? Quanto?
Quanto custará ao Brasil sem futuro o olhar
dos olhos arregalados de espanto e incerteza de crianças acomodadas pelas mães
desvalidas sobre restos de jornais nos degraus da catedral de São Paulo em noite
de garoa e frio? Dos quais não corre nem mesmo a lágrima invisível do choro
para dentro da alma, de crianças que já não sabem como é que se chora? Que
desse modo se descobrem personagens de pátria nenhuma, de sonho nenhum, os
ninguéns do Brasil de hoje e de amanhã? São filhas do Brasil deitado em berço
esplêndido.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - ensaios sobre a incerteza do instante”(Editora Unesp).
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