Folha de S. Paulo
Não se deve culpar as vítimas pelo sucesso
de um fascistoide que ganha um microfone e sim quem lhe deu o microfone
Há pessoas bastante preocupadas com o que
consideram "mimimi" excessivo e patrulheiro de mulheres,
comunidade LGBTQIA+,
negros... A militância identificada com a defesa dos direitos dessas
comunidades e a adesão de meios de comunicação e empresas a seus valores
constituiriam um misto de censura e exclusivismo moral, escrevendo, então, a
cartilha de um novo autoritarismo, essencialmente hipócrita porque, na fórmula
conhecida, seria a homenagem do vício à virtude.
Pois é... A muitos cansa, então, a reivindicação de mais direitos ou da
correção da linguagem por
um padrão que, ao se pretender mais inclusivo, imporia limites
à liberdade de expressão. Entendo o ponto. Mas a mim, confesso, cansa mais o
chororô dos que veem cassada a licença que lhes parecia tão natural, caída da
árvore dos acontecimentos, para atacar os humilhados de sempre. Ou para
transformá-los em alvos de riso ou escárnio. Ou para submetê-los ao enxovalho
público. Seu pecado essencial? Ser quem são. O mimimi dos reaças é só
manifestação da covardia ressentida.
As palavras movem; os exemplos arrastam.
Aprendi no meu interior que não era correto "judiar" dos animais. No
antigo ginásio, já lá se vão quase 50 anos, uma professora explicou a origem do
vocábulo "Judiar". Significava ou "ser mau como um judeu"
ou dispensar a outrem tratamento que seria "próprio aos judeus".
Ficou claro, com o entendimento de que eu era capaz então, que
"judiação", qualquer que fosse a explicação, não revelava
necessariamente a intencionalidade do falante, mas reiterava uma história de perseguição
que havia restado na cultura.
"Quando eu era menino, falava como menino, pensava como menino e
raciocinava como menino", escreveu São Paulo. A etimologia e a história
dessas palavras, entre outras, ajudaram a me fazer adulto. Minha família e seu
entorno não eram antissemitas; nem mesmo tinham formação e informação
suficientes para participar de porfias dessa natureza. A ignorância de causa
desculpa, mas não muda a carga histórica que podem ter os vocábulos. A educação
era e é o caminho do esclarecimento. Sim, passei a "patrulhar" os
próximos: "Não se deve dizer isso! Sabem o que significa?"
Será que Maurício
Souza, para lembrar um caso que ficou em evidência, tem o direito de
achar que um super-herói
bissexual é uma ameaça? Nota-se, por suas postagens, que ele
identifica uma agenda a ser combatida nessa área. Se ele torna públicas —e não
apenas a seus íntimos— as suas restrições, aderindo a uma pauta que também
traduz uma escolha política, é evidente que se expõe a reações. As redes
sociais são a nova ágora, não o divã do analista. Nem do de Bagé.
"As consequências não foram
proporcionais ao agravo", dizem aqui e ali. Pois é... E se Souza estivesse
reagindo a um super-herói que fosse um judeu intergaláctico? É bem provável que
a questão nem mesmo estivesse sob debate. A luta contra o antissemitismo, como
é notório, goza de um status muito superior àquela que combate a discriminação
contra a população LGBTQIA+. É claro que são coisas distintas também na escala
do horror. Mas algo as une: não se pode aceitar em silêncio que pessoas sejam
discriminadas por ser aquilo que são.
Há quem aponte que a reação à homofobia praticada pelo jogador foi
contraproducente porque, com a mobilização evidente das milícias digitais
bolsonaristas, ganhou mais de um milhão de seguidores nas redes sociais. Assim,
seus críticos teriam potencializado a sua voz. Ninguém deve estranhar caso se
candidate a cargo eletivo ou vire comentarista político... Pode acontecer. Mas
não se deve culpar as vítimas pelo sucesso de um fascistoide qualquer que ganha
um microfone. O responsável é quem lhe dá o microfone.
Chega de falar, pensar, raciocinar e escrever como um moleque. Na 6ª acepção do
"Dicionário do Houaiss".
Um rodapé. Os "morocolunistas" —que é o bolsonarismo com pretensões
iluministas— não veem mal em atropelar a ordem legal se for para combater a
corrupção. E quem não concorda com eles ou é corrupto ou é conivente com os
malfeitos. São mais íntimos da guilhotina do que das luzes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário