Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Rubens Ricupero diz que a demanda reprimida
da pandemia impediu avanços maiores na COP26 e vaticina que mudança só virá
quando perda atingir os milhões de dólares
“Ela
é o veneno que eu escolhi para morrer sem sentir.” É com esta estrofe de “Pela
Décima Vez”, samba de 1935, que Noel Rosa define a amada. E é nele que o
embaixador Rubens Ricupero se apoia para definir a 26ª COP, sigla para
Conferência das Partes, que se encerrou na semana passada. Os limites
esbarrados lhe mostraram que o conjunto das nações ainda escolhe matar o
planeta aos poucos porque seu aquecimento ainda não lhe provoca medo de morrer.
Não foi capaz de suscitar, na opinião pública mundial, o choque que se conheceu
com a pandemia quando as pessoas foram obrigadas a mudar de comportamento e de
vida.
Aos 85 anos, o ex-secretário-geral da
Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) e
ex-ministro do Meio Ambiente não precisou mudar seu jeito enclausurado de ser
ao longo da pandemia para dimensionar a ameaça do aquecimento global resultante
de seu maior encontro. E conclui que a própria pandemia pode ter sido um dos
fatores a impedir avanços maiores. Como os países correm para atender à demanda
reprimida ao longo da clausura, agiganta-se o custo político das decisões rumo
à economia de baixo carbono. A se confirmar sua previsão, a mudança só vai
acontecer, no Brasil e no mundo, quando as catástrofes chegarem aos milhões de
dólares.
Não que a conferência tenha sido pura decepção. Os piores pressentimentos de Ricupero, tanto em relação à disputa entre as duas superpotências, China e Estados Unidos, quanto à participação brasileira, acabaram por não se confirmar. O pessimismo do embaixador vem da certeza de que os compromissos assumidos, por mais tímidos que sejam, não se farão cumprir e, se o forem, não evitarão o cataclisma climático.
Tome-se, por exemplo, as NDC (contribuições
nacionalmente definidas), sigla para os compromissos voluntários apresentados
por mais de 150 países para a redução na emissão de gases de efeito estufa.
Houve um maior consenso em relação à fixação do patamar de 1,50 C de aumento de
temperatura no fim do século em relação àquela vigente na era pré-revolução
industrial.
Oficialmente, porém, a soma de todas as
propostas feitas pelo conjunto das nações, se cumpridas, levaria a um aumento
de temperatura de 1,80 C. E o cálculo de institutos independentes chega a 2,40
C. E como nunca se cumprem as propostas na sua integralidade, o quadro é mais
feio do que se pinta, diz o embaixador, testemunha de grande parte dos
encontros climáticos promovidos pelas Nações Unidas em três décadas.
O consolo é que podia ser pior. Era o que
se desenhava da ausência dos presidentes russo, Vladimir Putin, e,
principalmente, do chinês. Sem sair da China há 21 meses, por conta da política
de covid-zero, Xi Jinping não enviou sequer um vídeo com os compromissos de seu
país, como fizeram outras lideranças. Se é a economia que mais tem a ganhar com
a conversão ambiental, por ser o maior fabricante de equipamentos para energia
renovável do mundo, a China tem também uma velocidade de adaptação a ser
regulada pelas ambições políticas de seu dirigente máximo. Em novembro de 2022,
o Partido Comunista Chinês se reúne para seu 20º Congresso para confirmar o
terceiro mandato de Xi Jinping. Pelo preâmbulo da resolução do Comitê Central
do PCC durante a COP 26, não ficou dúvida de que é o que acontecerá.
O cálculo político e a aparente soberba, no
entanto, não impediram o diálogo entre os dois países, mesmo quando o
establishment da política externa americana já lhes decretava em nova Guerra
Fria, conta um diplomata brasileiro que acompanha de perto a relação bilateral.
Compute-se aí a visita de dois dias, em setembro, com dispensa de quarentena,
de John Kerry, enviado especial dos EUA para mudanças climáticas. Ou a maneira
pragmática com a qual a imprensa chinesa acolheu a agressividade de Nicholas
Burns, indicado de Biden para comandar a embaixada dos EUA em Pequim. Suas
declarações, ao longo da sabatina no Senado americano, foram compreendidas como
parte do jogo para arrancar o aceite parlamentar.
E o resultado foi colhido 48 horas antes do
encerramento da COP 26, quando Kerry e o enviado especial para clima da China,
Xie Zhenzua, fizeram uma declaração conjunta e, cinco dias depois, quando os
próprios chefes de Estado tiveram seu primeiro encontro, ainda que virtual. A
declaração conjunta terá pouco impacto imediato, mas manteve os dois países num
terreno comum de entendimento. Se EUA e China têm muitas áreas de desacordo,
diz Ricupero, a declaração mostrou que o meio ambiente não é uma delas. Como
todo diplomata, o embaixador brasileiro mede e pesa todas as palavras de
eventos do gênero. E neste foi fisgado pela “questão existencial” com a qual
delegado chinês definiu o aquecimento global.
Na existência dos dois países, a China
aparece como a mais resistente a compromissos ambientais ousados. Isso porque
reluta em arcar com o ônus de maior emissor atual de dióxido de carbono que, de
fato, é. Cede a liderança aos EUA, porém, na emissão acumulada de gases que
permanecem na atmosfera e contribuem para o aquecimento. Em balanço recente
feito pelo site britânico “Carbon Brief” (www.carbonbrief.org/analysis-which-countries-are-historically-responsible-for-climate-change),
estima-se que do CO2 produzido desde a Revolução Industrial no mundo, 20% é
“made in USA”. A China vem em segundo, com 11%, em grande parte porque entrou
tardiamente no jogo. Seguem Rússia (7%), Alemanha (4%) e Reino Unido (3%).
Brasil (5%) e Indonésia (4%) são os dois únicos países que devem sua presença
no pódio da emissão acumulada majoritariamente ao desflorestamento.
A entrada tardia da China no jogo da
industrialização ainda faz com que o país tenha uma única planta entre as dez
maiores térmicas a carvão que poluem o planeta. A Coreia do Sul lidera com três
unidades e a Índia vem em seguida com duas. Polônia, Taiwan, Alemanha e Japão
têm, cada um, uma usina na lista. Estudo produzido pela Universidade do
Colorado e publicado na Environmental Research Letters (iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-9326/ac13f1/pdf)
mostra que o fechamento das 5% piores térmicas a carvão do mundo reduziria 75%
da emissão de carbono provocada pelo setor.
O peso da Índia na lista das dez maiores
térmicas a gás explica seu protagonismo na mitigação do compromisso sobre a
energia a carvão com a troca do termo “eliminação” por “redução” acrescido de
um gradualismo a perder de vista. Os Estados Unidos não têm uma única planta na
lista das dez maiores do mundo, mas, internamente, o dano provocado por suas
grandes térmicas a carvão é mais concentrado do que na China e de suas mais de
duas mil usinas. O constrangimento do qual a China é poupada e atormenta Biden
é o custo eleitoral de se avançar no tema.
Se o crescimento dos partidos verdes e a
dominância da consciência ambiental entre jovens são o que sustenta as posições
mais ousadas da União Europeia no debate climático, nos Estados Unidos o avanço
de Biden no tema ameaça lhe tomar a maioria democrata no Senado, diz Ricupero.
O presidente americano tem em Joe Manchin, um correligionário de Virgínia
Ocidental, um dos Estados mais dependentes do carvão do país, um dos maiores
opositores ao seu “Green New Deal”. Se Biden perder um único assento, vai-se a
maioria democrata no Senado. Conseguiu passar no Congresso o pacote de US$ 1,3
trilhão de investimento em infraestrutura, mas patina nos pacotes social e
ambiental.
O federalismo que, nos EUA, se levanta como
uma barreira contra os compromissos ambientais do governo, o que resta de seus
contornos no Brasil tem um efeito inverso. O Consórcio Brasil Verde
apresentou-se, na COP 26, como a iniciativa governamental brasileira mais
consequente em Glasgow. Articulado por 25 governadores, o consórcio constituiu
um fundo único de investimentos para captar recursos de financiamento climático
para a redução de emissões e incentivo à geração de energias renováveis. Num
dos Estados que o integra, o Rio Grande do Sul, as pretensões eleitorais de seu
governador, Eduardo Leite, pré-candidato tucano à Presidência, abortaram o pólo
carboquímico que havia sido arquitetado por seu antecessor com vistas à
exploração da maior reserva de carvão do país.
Governadores, entidades ambientais,
empresários e o que restou da diplomacia brasileira depois de 27 meses de
Ernesto Araújo salvaram a participação oficial do país em Glasgow da
catástrofe. O Brasil não recuperou a posição que tinha antes, continua com uma
imagem muito abalada, mas não saiu com pecha de vilão, diz Ricupero. Subscreveu
a declaração das florestas e do metano, a despeito das resistências dos
ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente.
Nenhum dos dois, porém, será cumprido pela
frustração dos avanços esperados no financiamento e no regramento do mercado de
crédito de carbono. O texto final não satisfez o mundo em desenvolvimento e
levou o dirigente de um arquipélago ameaçado pelo avanço do mar a deixar um
apelo dramático: ao afogamento, prefere ser bombardeado.
O quadro, somado ao enfraquecimento dos
negociadores brasileiros na era Jair Bolsonaro, levará o país a ter mais
dificuldades frente ao estrangulamento crescente de seus mercados advindo, por
exemplo, da declaração conjunta entre EUA e China que pode vir a apertar o
cerco sobre a agropecuária e a mineração com mecanismos de rastreamento.
A sensação de que se fez muito barulho por pouco cresceu porque no mesmo fim de semana em que a COP 26 se encerrou, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais divulgou dados que mostram o desmatamento de outubro de 2021 como o maior no mês em toda a série histórica. E o presidente Jair Bolsonaro foi à Expo Dubai para dizer a investidores que toda essa conversa ambiental sobre o Brasil é notícia falsa. Por pouco não tomou de empréstimo o resumo da ativista sueca Greta Thunberg sobre a conferência da ONU: blá-blá-blá.
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