Folha de S. Paulo
Sobrevivência da democracia está associada
à lealdade dos atores políticos às instituições constitucionais
Ao longo de três décadas de democracia
constitucional, do conturbado governo Collor à controvertida prisão do
ex-presidente Lula, fomos nos condicionando à ideia de que decisões judiciais,
ainda que contestáveis, são para ser cumpridas, especialmente quando proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal.
Essa premissa básica do Estado democrático
de direito, que designa que ninguém está acima da lei, começou a sofrer um perigoso
processo de erosão em 2018, quando o então comandante do Exército sentiu-se
à vontade para ameaçar o Supremo, caso concedesse um habeas corpus que
permitiria ao ex-presidente Lula participar do pleito eleitoral.
A postura sistematicamente afrontosa do presidente Bolsonaro ao STF tem incentivado o desrespeito à jurisdição constitucional, não apenas por parte do "guarda da esquina", que se arvora a intimidar professores e jornalistas ou prender aqueles que se manifestam contra o presidente, mas também por instituições que deveriam ter clareza de suas obrigações em relação às regras do jogo democrático. Lembrando sempre que a sobrevivência da democracia está intimamente associada à lealdade dos atores políticos às instituições constitucionais.
Nas últimas semanas dois casos
de afronta ao Supremo Tribunal Federal acenderam a luz vermelha.
A chacina
do Complexo do Salgueiro, como
a de Jacarezinho que lhe antecedeu, demonstra que as forças policiais
e as autoridades de segurança pública do estado do Rio de Janeiro vêm se
negando reiterada e deliberadamente a cumprir decisão do Supremo, que
estabeleceu uma série
de condicionantes para a realização de operações policiais nas comunidades do
estado, enquanto prevalecer a pandemia.
É fato que setores significativos das
forças de segurança de alguns estados jamais se submeteram pacífica e
ordeiramente às obrigações de assegurar os direitos à segurança e à vida da
população, especialmente no
que se refere aos jovens negros, que lhe foram impostas pela Constituição.
A falta de cerimônia com que isso tem sido feito pela polícia do Rio, após a
chamada ADPF das Favelas, aponta para uma estratégia mais ampla de afronta à
autoridade do Supremo.
Esse processo de naturalização do
descumprimento de decisões da Corte torna-se ainda mais preocupante quando
decorre de uma ação do centro nevrálgico do sistema representativo, que é o
Congresso Nacional. Embora conflitos entre parlamentos e tribunais sejam comuns
em regimes democráticos, pois é da natureza do sistema de freios e contrapesos
que os poderes entrem em choque, temos aqui uma situação mais grave.
Ao flertarem com a possibilidade de negar
publicidade aos nomes daqueles parlamentares beneficiados pela chamada emenda
do relator, os presidentes das duas casas do Congresso Nacional não apenas
afrontaram explicitamente a autoridade do Supremo, mas também demonstram
disposição para encobrir artifícios ilegítimos para fraudar a formação da
vontade parlamentar. Se no presidencialismo de coalizão é natural que os
membros da base de apoio ao governo tenham acesso a determinados cargos e
recursos governamentais, o processo de cooptação não pode se dar de forma
indevassável ao escrutínio público.
Embora não se possa eximir o Supremo por
parcela da responsabilidade pelo declínio de sua autoridade, os recentes
desacatos à jurisdição da Corte decorrem, sobretudo, dos seus acertos,
consistindo, portanto, numa constante tentativa de amesquinhar nosso sistema de
freios e contrapesos.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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