O Globo
O papel do cientista é ajudar a desenhar a
melhor política pública possível para alcançar o objetivo que foi escolhido
pela sociedade
A ideia de políticas públicas baseadas em
evidências é revolucionária. Em um mundo complexo e de informação imperfeita, a
alternativa à ciência para o desenho das políticas é, na melhor das hipóteses,
a experiência prática anedotal do servidor público ou políticos; ou, na pior
delas, uma captura da regulação por grupos de interesse.
Em ambientes de maior incerteza, como a
pandemia que atravessamos atualmente, usar a melhor evidência disponível, de
forma contínua, torna-se ainda mais necessário. Mas há dois grandes desafios
nesse objetivo.
O primeiro deles é que pouca gente de fato
está disposta a mudar de opinião com base em evidências científicas. Em seu
livro “A Mente Moralista” (Ed. Alta Cult, 2020), o psicólogo social da
Universidade de Nova York Jonathan Haidt tenta explicar o porquê.
Haidt argumenta que, em geral, as pessoas escolhem os grupos com os quais se identificam com base em semelhanças morais e somente depois racionalizam as posições consideradas prioritárias por seu grupo.
Isso explicaria porque, por exemplo, foi
tão fácil para Donald Trump remodelar o Partido Republicano à sua imagem e
semelhança. Mantido o senso de pertencimento à tribo, os eleitores republicanos
racionalizaram mudanças radicais nas crenças do partido posteriormente.
No Brasil, o camarada descolado que se diz
pró-ciência na questão do coronavírus prontamente rejeita o argumento (errôneo
e anticientífico) de que o aumento de mortes após o começo da vacinação indica
que a vacina não funcionou.
Mas o mesmo camarada usa o argumento
(igualmente errôneo e anticientífico) de que o aumento da informalidade após a
reforma trabalhista indica que a reforma trabalhista não funcionou.
Não se faz ciência comparando-se apenas
antes e depois. É preciso haver um grupo de controle para saber o que teria
acontecido na ausência do “tratamento” (seja a vacina, seja a reforma
trabalhista). Sem vacina, plausivelmente, o contrafactual seria de ainda mais
mortes. Sem reforma trabalhista, plausivelmente, o contrafactual seria de ainda
mais informalidade.
Como explica Haidt, esse camarada não se
importa com a ciência. Ele se importa mesmo em defender o que defende a tribo
dele, pinçando argumentos que lhe são convenientes. Ele não está disposto a ser
convencido de que suas crenças estão erradas. Ele usa a ciência como os bêbados
usam os postes: para apoio, não para iluminação.
O outro desafio é que, muitas vezes, os
especialistas esquecem que seu papel numa sociedade democrática não é modelar a
sociedade conforme aquilo que eles, pessoalmente, acreditam ser moralmente
adequado.
Definir qual deve ser o objetivo social
requer um julgamento moral. Sobre alguns objetivos, há amplo consenso. Quase
todo mundo quer menos pobreza e maior prosperidade.
Mas outras coisas são mais complicadas.
Queremos uma sociedade com um estado de bem-estar maior e mais impostos para
todos, ou uma com menos proteção social e menos impostos? Aceitamos uma renda
um pouco mais baixa para o brasileiro típico em troca de menos desigualdade?
Não compete ao cientista social definir
qual desses modelos é melhor. Quem escolhe essas coisas é a sociedade, por meio
de seus representantes democráticos.
Na pandemia, os desafios são similares.
Todos concordamos que mortes devem ser evitadas, na medida do possível. Mas
nossa tolerância ao risco varia. Num extremo, poderíamos ter ficado em casa por
dois anos. Noutro, poderíamos não ter tomado nenhuma medida de mitigação. A
maior parte das pessoas está em algum ponto desse espectro.
Outra vez, não compete ao especialista em
saúde pública definir qual é a tolerância ao risco ideal. Decidir qual é o
nível de risco socialmente adequado é uma escolha moral e não técnica.
Qual é o papel do cientista? Compete a ele
tomar esse objetivo social como dado e ajudar a desenhar a melhor política
pública possível, com base em evidências científicas, para atingir aquele
objetivo. Não é o cientista que escolhe o objetivo. Mas ele é essencial para
otimizar a ação do poder público na busca dessa meta.
A revolução da política pública baseada em
evidências é fundamental, mas essas barreiras são grandes. Como alerta Haidt,
dificilmente ela vai conseguir mudar crenças políticas. Mas, com sorte, vai
convencer alguns políticos, burocratas e cidadãos de que o melhor caminho para
alcançar os objetivos que eles já têm pode ser diferente. E isso já seria um
grande avanço.
Nenhum comentário:
Postar um comentário