sábado, 4 de dezembro de 2021

Carlos Góes - Ciência e política pública

O Globo

O papel do cientista é ajudar a desenhar a melhor política pública possível para alcançar o objetivo que foi escolhido pela sociedade

A ideia de políticas públicas baseadas em evidências é revolucionária. Em um mundo complexo e de informação imperfeita, a alternativa à ciência para o desenho das políticas é, na melhor das hipóteses, a experiência prática anedotal do servidor público ou políticos; ou, na pior delas, uma captura da regulação por grupos de interesse.

Em ambientes de maior incerteza, como a pandemia que atravessamos atualmente, usar a melhor evidência disponível, de forma contínua, torna-se ainda mais necessário. Mas há dois grandes desafios nesse objetivo.

O primeiro deles é que pouca gente de fato está disposta a mudar de opinião com base em evidências científicas. Em seu livro “A Mente Moralista” (Ed. Alta Cult, 2020), o psicólogo social da Universidade de Nova York Jonathan Haidt tenta explicar o porquê.

Haidt argumenta que, em geral, as pessoas escolhem os grupos com os quais se identificam com base em semelhanças morais e somente depois racionalizam as posições consideradas prioritárias por seu grupo.

Isso explicaria porque, por exemplo, foi tão fácil para Donald Trump remodelar o Partido Republicano à sua imagem e semelhança. Mantido o senso de pertencimento à tribo, os eleitores republicanos racionalizaram mudanças radicais nas crenças do partido posteriormente.

No Brasil, o camarada descolado que se diz pró-ciência na questão do coronavírus prontamente rejeita o argumento (errôneo e anticientífico) de que o aumento de mortes após o começo da vacinação indica que a vacina não funcionou.

Mas o mesmo camarada usa o argumento (igualmente errôneo e anticientífico) de que o aumento da informalidade após a reforma trabalhista indica que a reforma trabalhista não funcionou.

Não se faz ciência comparando-se apenas antes e depois. É preciso haver um grupo de controle para saber o que teria acontecido na ausência do “tratamento” (seja a vacina, seja a reforma trabalhista). Sem vacina, plausivelmente, o contrafactual seria de ainda mais mortes. Sem reforma trabalhista, plausivelmente, o contrafactual seria de ainda mais informalidade.

Como explica Haidt, esse camarada não se importa com a ciência. Ele se importa mesmo em defender o que defende a tribo dele, pinçando argumentos que lhe são convenientes. Ele não está disposto a ser convencido de que suas crenças estão erradas. Ele usa a ciência como os bêbados usam os postes: para apoio, não para iluminação.

O outro desafio é que, muitas vezes, os especialistas esquecem que seu papel numa sociedade democrática não é modelar a sociedade conforme aquilo que eles, pessoalmente, acreditam ser moralmente adequado.

Definir qual deve ser o objetivo social requer um julgamento moral. Sobre alguns objetivos, há amplo consenso. Quase todo mundo quer menos pobreza e maior prosperidade.

Mas outras coisas são mais complicadas. Queremos uma sociedade com um estado de bem-estar maior e mais impostos para todos, ou uma com menos proteção social e menos impostos? Aceitamos uma renda um pouco mais baixa para o brasileiro típico em troca de menos desigualdade?

Não compete ao cientista social definir qual desses modelos é melhor. Quem escolhe essas coisas é a sociedade, por meio de seus representantes democráticos.

Na pandemia, os desafios são similares. Todos concordamos que mortes devem ser evitadas, na medida do possível. Mas nossa tolerância ao risco varia. Num extremo, poderíamos ter ficado em casa por dois anos. Noutro, poderíamos não ter tomado nenhuma medida de mitigação. A maior parte das pessoas está em algum ponto desse espectro.

Outra vez, não compete ao especialista em saúde pública definir qual é a tolerância ao risco ideal. Decidir qual é o nível de risco socialmente adequado é uma escolha moral e não técnica.

Qual é o papel do cientista? Compete a ele tomar esse objetivo social como dado e ajudar a desenhar a melhor política pública possível, com base em evidências científicas, para atingir aquele objetivo. Não é o cientista que escolhe o objetivo. Mas ele é essencial para otimizar a ação do poder público na busca dessa meta.

A revolução da política pública baseada em evidências é fundamental, mas essas barreiras são grandes. Como alerta Haidt, dificilmente ela vai conseguir mudar crenças políticas. Mas, com sorte, vai convencer alguns políticos, burocratas e cidadãos de que o melhor caminho para alcançar os objetivos que eles já têm pode ser diferente. E isso já seria um grande avanço.

 

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