O Estado de S. Paulo
A vingança, como se deu com o austríaco, tem-se dado nas ações repetidas da polícia no Brasil em operações marcadas por malvadeza
Em 23 de março de 1944, na Rua Rosella, em
Roma, ocupada por tropas alemãs, 32 soldados nazistas foram mortos em atentado
preparado pela resistência italiana. Por ordem de Hitler, para cada alemão
morto deveriam ser fuzilados dez italianos. Assim, aleatoriamente, 335 romanos
foram levados às Fossas Ardeatinas, ao sul da cidade, e lá executados.
Conforme o oficial responsável pelo
massacre, Priebke, condenado anos depois, na Itália, à prisão perpétua, a ordem
de Hitler consistia em “represália ao atentado organizado pela resistência”.
O médico Attilio Ascarelli, autor da
autópsia das vítimas do massacre, bem definiu: “Foi a cruel satisfação dum
brutal espírito de vingança”.
A vingança, seja a calculadamente arquitetada, seja a de imediato aplicada, ao não ter proporção com o mal antes sofrido, visa apenas ao deleite do espírito perverso com a crueldade imposta.
Assim se deu com Hitler, assim se tem dado
nas ações repetidas da polícia brasileira em operações-vingança, marcadas por
malvadeza, acentuadas no governo Bolsonaro.
Essas operações-vingança atingem em geral
pessoas pobres, negras e moradoras das favelas ou da periferia destituídas de
cidadania, pois reputadas como “não sujeitos de direitos”, passíveis, por
consequência, de ter violadas sua vida, sua integridade física e moral. Quem os
ataca, com violência sanguinária, são soldados ou inspetores de origem também
humilde, mas que pretendem ser alheios a esta categoria dos desprovidos de
direitos, sobre os quais afirmam sua “autoridade e superioridade”.
Fiquemos em exemplos deste ano: no dia 6 de
maio, em operação da Polícia Civil, 200 policiais a pé, quatro blindados, com
apoio de helicópteros, entraram na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro,
para cumprir 21 mandados de prisão. Logo no início, deu-se o infausto homicídio
de policial civil atingido por um tiro. A operação de cumprimento de mandado de
prisão transformou-se em operação-vingança, resultando em 27 pessoas mortas.
Muitos, rendidos ou recolhidos em casa,
foram executados a sangue frio. Atingiram-se aleatoriamente pessoas com ou sem
antecedentes criminais (como se ter antecedente significasse a permissão para
ser executada), e, dos 27 mortos, apenas 3 constavam dos mandados de prisão.
Cenas horripilantes foram protagonizadas. A comunidade ficou entregue à
agressividade destruidora.
De forma irresponsável, o presidente da
República elogiou a operação e publicou nas redes este comentário: “Ao tratar
como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a
esquerda os igualam ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o
próximo”. Na verdade, dos assassinados pela polícia, poucos tinham relação com
o tráfico.
Para reafirmar a prevalência do direito e
em apoio ao Supremo
Tribunal Federal (STF), em 20 de maio seis
ex-ministros da Justiça, entre os quais eu, lançaram carta aberta: “Como
ex-ministros e cidadãos, estamos convencidos da necessidade de atuação do
Supremo Tribunal Federal para garantir a força normativa da Constituição e
limitar a ação estatal em segurança pública que não esteja pautada pelo
respeito à vida e às ordens judiciais”. No dia seguinte, o STF, na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, em voto do relator,
reafirmou a permissão para operação policial apenas em caso excepcional, com
aviso prévio ao Ministério Público. Pouco adiantou!
Em 12 de junho de 2021, na cidade de
Tabatinga (1.106 km de Manaus), bairro da Baixada, houve troca de tiros:
atirador e sargento da PM, à paisana, morreram. Policiais militares entraram no
bairro em busca de cúmplices e mataram sete pessoas, sendo três jogadas no
lixão. Durante a invasão do bairro, um PM disse a familiares das vítimas:
“Agora é a lei do Bolsonaro, bandido bom é bandido morto”.
No mês passado, como represália à morte do
soldado Leandro da Silva, assassinado em patrulhamento, policiais militares,
desconfiando estar o assassino no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro,
executaram aleatoriamente nove pessoas dessa comunidade, deixando os corpos no
mangue. E o pior: instalado o terror, os policiais festejaram com churrasco e
cerveja.
Em 2017, o Brasil, por não se apurar o
massacre na Favela Nova Brasília, foi condenado pela Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. Nenhum efeito reeducativo: pouco se investigam massacres e muitos
inquéritos são arquivados. A aritmética de Hitler continua impune.
O que resta fazer? Deve-se cobrar de
governadores o ensino de direitos humanos na formação dos quadros das
instituições policiais. A prevenção e repressão penal nada perdem, só ganham,
se policiais respeitarem os direitos fundamentais: a polícia que se teme abre
estrada para o crime organizado.
Medida eficaz está em ser o trabalho do
policial monitorado por câmeras corporais, que revelam os fatos como eles são.
De outra parte, entidades da sociedade podem promover a responsabilidade civil
do Estado pela violação a preceitos fundamentais, visando, assim, a constranger
o Tesouro estadual.
Quanto a Bolsonaro, este é um caso perdido.
*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
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