O Estado de S. Paulo.
É um conforto ver que Lamounier e Bacha continuam remando contra a corrente, na busca dos melhores caminhos para o Brasil
Diferentes de mim, Bolívar Lamounier e Edmar Bacha, que acabam de publicar suas histórias (Edmar Bacha, No país dos contrastes, Selo Real, 2021; e Bolívar Lamounier, De onde, para onde, Global, 2018, e Antes que me esqueça, Desconcertos, 2021), são mineiros de verdade. Bolívar nasceu em Dores do Indaiá, e lembra com afeto as casas coloniais, as pescarias no rio e o isolamento que fazia da cidade parte do sertão mineiro. Edmar lembra da pequena Lambari do sul de Minas, do sobrado em que morava, do sanduíche que comia no Bar do Juca e do apito do trem que chegava à cidade ao anoitecer. Foi em Dores, nos anos 20, que Francisco Campos fundou uma Escola Normal, uma das primeiras do País, onde a mãe se formou como professora rural e na qual matriculou o filho para estudar nas “classes anexas” em que a melhor pedagogia da época era adotada. O pai era um pequeno fazendeiro e comerciante, da família Lamounier de Itapecerica, que incluía médicos, políticos e músicos. Lambari, em comparação, era uma cidade mais moderna, parte do “circuito das águas” que recebia os turistas das cidades grandes em seus hotéis e cassinos. Do lado da mãe, que era diretora da escola local, Edmar vem de uma família de origem portuguesa, os Lisboa, na qual o culto da literatura era personificado na tia Henriqueta. Os Bacha são de origem libanesa, que começaram a chegar ao Brasil no final do século 19 em busca de novas oportunidades. Ambas as famílias se mudaram para Belo Horizonte e, no início dos anos 60, Bolívar e Edmar se encontraram na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, um no curso de Sociologia e Política, outro em Economia.
Nenhum fazia parte da “tradicional família
mineira” que controlava a política, as terras e os recursos do Estado. Nem da
grande massa, incluindo antigos escravizados que, terminado o ciclo do ouro do
século 18, ficou isolada nas pequenas aldeias e roças do interior, numa
economia que mal garantia a sobrevivência. Mas faziam parte de um grupo
significativo de pessoas que, pelo empreendedorismo e, sobretudo, pela educação,
buscavam participar do progresso que emanava do Rio de Janeiro e de São Paulo
e, aos poucos, pelo rádio e pelas estradas, ia chegando ao interior, atraindo
os mais inquietos, ou mais necessitados, para as capitais. Eram, pode-se dizer
com algum exagero, sucessores dos aventureiros que vieram para Minas em busca
do ouro, participaram da Inconfidência,
escreviam poesia e liam às escondidas os
livros proibidos da imensa biblioteca do cônego de Mariana.
Estudar Sociologia, Política e Economia era
também sair da rota tradicional dos cursos de Direito, Medicina e Engenharia,
preferidos pelos filhos das famílias tradicionais. A Faculdade de Ciências
Econômicas, com seu programa de bolsas de estudo, criou entre os estudantes um
ambiente efervescente em que novas ideias e estilos de vida eram
experimentados, a militância política atraía quase todos e de onde tantos
saíram para voos mais altos. Bolívar e Edmar, nos anos 60, estavam entre os
primeiros cientistas sociais brasileiros a partir para os modernos cursos de
doutorado nos Estados Unidos – Universidade da Califórnia e Yale –, rompendo
com a tradição francesa que predominava na geração mais velha.
De volta ao Brasil, nos anos 70, ajudaram a
organizar novos cursos de pós-graduação que iriam formar as futuras gerações: o
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, por Bolívar, e o
departamento de Economia da Universidade de Brasília, por Edmar. Mais tarde,
Bolívar ajudou a organizar o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap), dirigido por Fernando Henrique Cardoso, e depois fundou o Idesp,
outro instituto independente de pesquisas sociais em São Paulo. Edmar, depois
de Brasília, foi um dos fundadores do curso de pósgraduação em Economia da PUC
do Rio de Janeiro.
Mas foi na produção intelectual e na vida
pública que ambos deram continuidade à inquietação mineira que traziam das
origens. Bolívar, ainda estudante, participou dos movimentos estudantis, chegou
a ser preso pela ditadura militar e escreveu sua tese de doutorado criticando a
tradição autoritária dos intelectuais brasileiros, à direita e à esquerda. Fez
parte da Comissão Afonso Arinos, que na década de 1980 procurou produzir, para
o Brasil, uma Constituição moderna e fundada em princípios de justiça social e
liberdade econômica, e em seus inúmeros livros e artigos foi sempre um defensor
da democracia parlamentarista.
Edmar, que no início se aproximou dos
economistas desenvolvimentistas como Celso Furtado, passou depois a dar
prioridade aos temas da liberdade e abertura da economia e do Estado eficiente
como os melhores caminhos para sair do círculo vicioso do atraso, da
desigualdade e da pobreza. Foi presidente do IBGE, de onde, nos anos 80,
participou do frustrado Plano Cruzado, e, finalmente, nos anos 90, foi um dos
principais organizadores e mentores intelectuais do Plano Real.
É um conforto ver que ambos continuam
remando contra a corrente, escrevendo e falando na busca dos melhores caminhos
para o Brasil moderno, que ainda acham viável, se livrar das tentações
populistas e reacionárias que mobilizam tantos. Autênticos mineiros.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira
de Ciências
Nenhum comentário:
Postar um comentário