sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Flávia Oliveira - Sem vida nem liberdade

O Globo

O ministro da Saúde — repito, da Saúde —, Marcelo Queiroga, em pronunciamento contrário à exigência de certificado vacinal de visitantes estrangeiros, repetiu frase que ouviu do chefe e ratificou. “Às vezes, é melhor perder a vida do que perder a liberdade”, sentenciou. Foi a mais inoportuna declaração emitida, até aqui, por um nome do governo Jair Bolsonaro — e olha que a concorrência não é pequena. Se crescimento do PIB fosse medido em comentários infelizes de autoridades, o Brasil estaria em pleno milagre econômico. Como não é, estamos nós estagnados, inflacionados, desempregados, famintos e, por ação oficial, em risco sanitário.

Ouvir a argumentação rasa do cardiologista titular da Saúde me conduziu à sofisticação intelectual do historiador Luiz Antonio Simas em “O corpo encantado das ruas”. É livro sobre a riqueza de saberes, vivências, culturas e visões de mundo garimpados na rua, nos subúrbios, nos terreiros, nas quebradas, nas favelas. No texto em homenagem a Dona Ivone Lara, a grande dama do samba tornada ancestral em 2018, o autor apresenta como “pouca coisa” a morte, na perspectiva do cessamento das atividades biológicas de um ser humano.

“Tudo que vive tem de morrer”, ensina. “Tudo que morre pode viver pela palavra, pela celebração dos ritos de lembrança e pelo arrebatamento. Tem morto mais vivo e dançando mais do que muito vivo que, ainda que respire, morreu.” É meu ponto.

Marcelo Queiroga, sob o código de encantamento das ruas, já perdeu a vida e a liberdade. Supõe-se vivo, mas está morto e refém de um projeto de poder que mente e abandona o próprio povo. Segue vivo um médico que, na mais grave pandemia em um século, 616 mil compatriotas mortos, desconsidera recomendação sanitária em nome de franquear o país a negacionistas globais da imunização que, comprovadamente, salva vidas?

Está viva uma autoridade que passa por cima da responsabilidade coletiva e solidária de governantes e governados pela saúde pública para defender o direito de um indivíduo poder transmitir um vírus potencialmente letal? E faz isso ciente, como ministro da Saúde, de que nenhum brasileirinho com 11 anos ou menos de idade teve a possibilidade de se vacinar? E de que cientistas recém-sequenciaram e ainda investigam transmissão e letalidade da variante Ômicron do vírus da pandemia?

Está vivo um quadro técnico que, em nome de um projeto eleitoral, rende-se ao superior hierárquico desqualificado? O mundo político comenta sem pudor a intenção de Queiroga, presidente licenciado da Sociedade Brasileira de Cardiologia, conselheiro titular do CRM-PB, de candidatar-se nas eleições 2022. Nessa ambição residem os malabarismos a que submete a própria gestão no Ministério da Saúde para dar conta das demandas ideológicas do presidente da República. Médico, segue leal ao líder que propaga uso de medicamentos sem eficácia contra Covid-19, sabota isolamento social e uso de máscara, promove aglomeração, diz que não se imunizou, mente sobre efeitos da vacina e recomendações do órgão de vigilância sanitária e, no púlpito da Assembleia Geral da ONU, declarou objeção ao passaporte vacinal.

Ainda ontem, a Fiocruz voltou a sublinhar no Boletim Observatório Covid-19 a relevância do documento como política pública para proteção coletiva e estímulo à vacinação. “A implementação de um passaporte de vacinas tem sido discutida como uma estratégia para estimular a imunização de parte da população que ainda não buscou os postos de vacinação, bem como para garantir o controle da pandemia num cenário de flexibilização de medidas não farmacológicas, como restrição de determinadas atividades que propiciam a aglomeração de pessoas”, diz o texto. E continua, em linha com decisão já referendada pelo Supremo Tribunal Federal: “Assume-se que, da mesma maneira que os indivíduos podem gozar da liberdade de não se vacinar, empresas, associações e entes de governo, em nome da proteção coletiva, podem exigir provas de imunização para o uso de serviços, trabalho e lazer”.

O ministro da Saúde distorce o significado de liberdade. Em suas palavras, melhor morrer do que impedir um antivacina de contagiar pessoas. Todo homem, pelo dito, tem o direito de infectar terceiros com o vírus que carrega, a começar pelo presidente da República. Em 2018, a Paraíba, estado de origem de Queiroga, elegeu dois senadores. Veneziano Vital do Rêgo (então PSB, hoje MDB) recebeu pouco mais de 844 mil votos; Daniella Ribeiro (PP), 831 mil. Para a bancada federal, o estado escolheu uma dúzia de deputados. O primeiro, Gervásio Maia (PSB), teve 146 mil votos, o último, Ruy Carneiro (PSDB), 61 mil. Por um punhado de votos, 213 milhões de brasileiros em fragilidade sanitária diante de uma pandemia ainda não debelada. Quem age assim já morreu.

 

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