O Globo
O ministro da Saúde — repito, da Saúde —,
Marcelo Queiroga, em pronunciamento contrário à exigência de certificado
vacinal de visitantes estrangeiros, repetiu frase que ouviu do chefe e
ratificou. “Às vezes, é melhor perder a vida do que perder a liberdade”,
sentenciou. Foi a mais inoportuna declaração emitida, até aqui, por um nome do
governo Jair Bolsonaro — e olha que a concorrência não é pequena. Se
crescimento do PIB fosse medido em comentários infelizes de autoridades, o
Brasil estaria em pleno milagre econômico. Como não é, estamos nós estagnados,
inflacionados, desempregados, famintos e, por ação oficial, em risco sanitário.
Ouvir a argumentação rasa do cardiologista titular da Saúde me conduziu à sofisticação intelectual do historiador Luiz Antonio Simas em “O corpo encantado das ruas”. É livro sobre a riqueza de saberes, vivências, culturas e visões de mundo garimpados na rua, nos subúrbios, nos terreiros, nas quebradas, nas favelas. No texto em homenagem a Dona Ivone Lara, a grande dama do samba tornada ancestral em 2018, o autor apresenta como “pouca coisa” a morte, na perspectiva do cessamento das atividades biológicas de um ser humano.
“Tudo que vive tem de morrer”, ensina.
“Tudo que morre pode viver pela palavra, pela celebração dos ritos de lembrança
e pelo arrebatamento. Tem morto mais vivo e dançando mais do que muito vivo
que, ainda que respire, morreu.” É meu ponto.
Marcelo Queiroga, sob o código de
encantamento das ruas, já perdeu a vida e a liberdade. Supõe-se vivo, mas está
morto e refém de um projeto de poder que mente e abandona o próprio povo. Segue
vivo um médico que, na mais grave pandemia em um século, 616 mil compatriotas
mortos, desconsidera recomendação sanitária em nome de franquear o país a
negacionistas globais da imunização que, comprovadamente, salva vidas?
Está viva uma autoridade que passa por cima
da responsabilidade coletiva e solidária de governantes e governados pela saúde
pública para defender o direito de um indivíduo poder transmitir um vírus
potencialmente letal? E faz isso ciente, como ministro da Saúde, de que nenhum
brasileirinho com 11 anos ou menos de idade teve a possibilidade de se vacinar?
E de que cientistas recém-sequenciaram e ainda investigam transmissão e
letalidade da variante Ômicron do vírus da pandemia?
Está vivo um quadro técnico que, em nome de
um projeto eleitoral, rende-se ao superior hierárquico desqualificado? O mundo
político comenta sem pudor a intenção de Queiroga, presidente licenciado da
Sociedade Brasileira de Cardiologia, conselheiro titular do CRM-PB, de
candidatar-se nas eleições 2022. Nessa ambição residem os malabarismos a que
submete a própria gestão no Ministério da Saúde para dar conta das demandas
ideológicas do presidente da República. Médico, segue leal ao líder que propaga
uso de medicamentos sem eficácia contra Covid-19, sabota isolamento social e
uso de máscara, promove aglomeração, diz que não se imunizou, mente sobre
efeitos da vacina e recomendações do órgão de vigilância sanitária e, no
púlpito da Assembleia Geral da ONU, declarou objeção ao passaporte vacinal.
Ainda ontem, a Fiocruz voltou a sublinhar
no Boletim Observatório Covid-19 a relevância do documento como política
pública para proteção coletiva e estímulo à vacinação. “A implementação de um
passaporte de vacinas tem sido discutida como uma estratégia para estimular a
imunização de parte da população que ainda não buscou os postos de vacinação,
bem como para garantir o controle da pandemia num cenário de flexibilização de
medidas não farmacológicas, como restrição de determinadas atividades que
propiciam a aglomeração de pessoas”, diz o texto. E continua, em linha com
decisão já referendada pelo Supremo Tribunal Federal: “Assume-se que, da mesma
maneira que os indivíduos podem gozar da liberdade de não se vacinar, empresas,
associações e entes de governo, em nome da proteção coletiva, podem exigir
provas de imunização para o uso de serviços, trabalho e lazer”.
O ministro da Saúde distorce o significado
de liberdade. Em suas palavras, melhor morrer do que impedir um antivacina de
contagiar pessoas. Todo homem, pelo dito, tem o direito de infectar terceiros
com o vírus que carrega, a começar pelo presidente da República. Em 2018, a
Paraíba, estado de origem de Queiroga, elegeu dois senadores. Veneziano Vital
do Rêgo (então PSB, hoje MDB) recebeu pouco mais de 844 mil votos; Daniella Ribeiro
(PP), 831 mil. Para a bancada federal, o estado escolheu uma dúzia de
deputados. O primeiro, Gervásio Maia (PSB), teve 146 mil votos, o último, Ruy
Carneiro (PSDB), 61 mil. Por um punhado de votos, 213 milhões de brasileiros em
fragilidade sanitária diante de uma pandemia ainda não debelada. Quem age assim
já morreu.
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