Folha de S. Paulo
Se todo ser humano pratica o autoengano,
como fica Bolsonaro nesse mapa da hipocrisia?
Todo ser humano pratica o autoengano, que é
o que lhe permite navegar pelas contradições em que se mete sem aniquilar a
autoimagem. Especialmente nos políticos, o autoengano é complementado por doses
generosas de hipocrisia. Não é algo a lamentar. Seria impossível fechar acordos
e até encetar negociações políticas, se as pessoas não fossem capazes de
perdoar desavenças passadas, rever posições e, no limite, transigir com
princípios. Algumas linhas vermelhas precisam ser mantidas, ou instauraríamos o
cinismo pleno, mas elas variam de indivíduo para indivíduo.
Como fica Jair Bolsonaro nesse mapa da hipocrisia? Dado que não sou grande fã dele, seria tentador pintá-lo como um cínico sem estribeiras, que mente deslavadamente para obter o que deseja, mas não creio que seja tão simples. Senão por outros motivos, mente melhor o sujeito que acredita nos próprios engodos. E Bolsonaro levou 58 milhões de brasileiros no papo.
Não penso, por exemplo, que o presidente
tenha sido sincero em sua conversão
ao liberalismo, que jamais soou convincente. Mas será que podemos dizer o
mesmo de sua propalada disposição para combater a corrupção? Se Bolsonaro
pareceu autêntico quando dizia que acabaria com a roubalheira, como
conciliar isso com o
envolvimento da família nas "rachadinhas"? Hipocrisia ou
autoengano?
Acho que há aqui uma boa dose de
autoengano. O cérebro pode ser criativo na hora de inventar desculpas. Um
caminho é dizer a si mesmo que as verbas parlamentares pertencem ao parlamentar.
O modo como ele as gasta (quanto vai para atividades, quanto, para o bolso) é
um detalhe que nem deveria estar sob escrutínio público. É obviamente uma forma
errada de pensar, mas é o tipo de erro para o qual o autointeresse empurra sem
dificuldades uma pessoa.
Para desenhar instituições melhores, precisamos compreender as brechas de que o cérebro se vale para tentar tirar vantagens indevidas.
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